Em sua edição de 27/07/97 o Jornal do Brasil trazia uma matéria com Egberto Gismonti, que estava lançando um novo CD, Meeting Point, gravado na Lituânia. A matéria, assinada por Lena Frias, tinha por título "Gismonti e a linguagem do ilimitado":
"Egberto Gismonti desdenha um pouco da palavra, como um estorvo na comunicação. É músico e, como tal, dispõe da linguagem do ilimitado. Mas, apesar do entrave, conversar com esse grande artista, que está lançando novo CD, Meeting Point, gravado na Lituânia, é um exercício prazeroso e desafiador. Gismonti não é linear no compor, nem no dizer. 'Mais de uma vez, vi como a palavra atrapalha', reafirmou, ao comentar a forma como se entendeu - musicalmente - com o lituano e outras línguas não familiares. A palavra que atrapalha é, contudo, a mesma que o seduz no amigo Manoel de Barros, o poeta pantaneiro do chão e do pequeno; 'Ele fala na formiga sob a folha que está atrás de uma árvore...' - e completa o encantamento com um gesto de maestro. Gismonti vai compor um poema sinfônico sobre O Livro das Ignorãças de Manoel de Barros: 'Sonho ver a Cássia Eller falando os textos do Manoel e a orquestra tocando'.
Gismonti está musicando a peça Les Bonnes, de Jean Genet, a ser apresentada em Paris, no ano que vem. 'É um trabalho fundamentado na fé que tenho na vida.' Religiosidade? 'Eu não sei o nome, mas cai naquilo da utopia.' Gismonti tem obra vasta, 53 discos, música ambiental, trilhas sonoras, balés. Respeitado no exterior, o Brasil precisa conhecê-lo melhor. Obras como Sol do Meio-Dia, a partir da imersão nos sons do Xingu, Mágico, Dança das Cabeças, Academia de Danças já são clássicas. Mas Gismonti está soltinho, em relação a tudo isso. Sobre a própria obra, diz que 'não é pra levar tão a sério, é pra levar no prazer'.
Gismonti é um cara engraçado, com uns olhos brincalhões e um jeito de cigano chefe de caravana. Guarda os bastos cabelos sob um gorro de crochê: 'Desde pequeno minha mãe dizia que eu ficava bonitinho assim. Estou sempre com ele. É uma forma de lembrar minha mãe.'
Meeting Point é belíssimo. A música flui numa linguagem límpida, boa de entender. 'É bão, como diz meu amigo Manoel de Barros'. O CD já foi lançado na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e chega ao Japão em agosto. Ficou pronto em apenas uma semana. A Lithuanian State Symphony Orchestra recebera as partituras e, quando Gismonti chegou, tudo já estava preparado. 'A melhor orquestra brasileira para peças sinfônicas que eu conheço atualmente é lituana', exagera e provoca. Por que Lituânia? 'Porque lá os músicos mantêm a alegria da arte e a humildade diante da própria capacidade de exercer essa arte. São livres para a música, tocam o dia inteiro, alegremente. Realizam a utopia do exercício prazeroso da profissão. E o melhor é que se dedicam por inteiro a uma coisa que não existe - a música não existe, conclui, os olhos faiscando.
Não explica esse conceito da inexistência da música ('Explicar? Como?'). Tem razão. O mistério não se explica.. Vive-se, e pronto. Passa para outros temas, a Lituânia, o jeito do povo, as paisagens. Confirma que trabalhar com orquestras de países do antigo bloco soviético é economicamente sedutor. 'São orquestras ótimas, cujos artistas ainda não têm uma relação capitalista com o dinheiro.' Mas para Gismonti, que goza da confiança e da solidez econômica da gravadora alemã ECM, com quem vem trabalhando há algum tempo, o que mais pesou na escolha foi outro fator; 'Eu não queria sotaque nenhum, vício nenhum, só alegria. E assim foi.'
Gismonti tem estúdio e selo particulares, o Carmo, cujo nome é uma referência afetiva à cidade fluminense onde nasceu. Detém também os direitos de comercialização de seus fonogramas da EMI, a gravadora anterior. 'A Carmo produz e a ECM distribui para muitos países. É maravilhoso', pontua com seu exclamativo predileto. Encontrou o selo até numa pequena loja do Tirol, nos Alpes. 'Foi maravilhoso.' Mas, embora trabalhe fora do país, não considera o ambiente musical brasileiro saturado: 'Nunca esteve tão bom'.
Gismonti gosta de experimentar a música brasileira nos formatos mais diversos e o novo CD não foge à regra. 'Estou me tornando cada vez mais brasileiro. Teimoso como um bom brasileiro.' Brasileiramente redescobre a improvisa. Por exemplo, usa, na corda sol do violão, linha Caiçara A,B e C, própria para pesca de dourado. 'Não existe nada melhor em matéria de corda sol.' E por aí viaja na conversa, atirando frases inesperadas, nunca se mostrando de todo, embora não exatamente se escondendo. Não raro, depois de uma delas, ensina: 'É Fernando Pessoa'. Nas viagens, leva consigo um violão e um piano mudo, onde se exercita. E imagina, no avião, alguém perguntando, curioso: 'Está tocando?' Só para desenhar, na ponta dos lábios, a resposta igualmente muda: 'Estou'. Uma piada, que 'infelizmente nunca acontece, porque ninguém nunca pergunta nada'.
Em Meeting Point, o computador cita instrumentos como o zabumba, ritmos como o maixe, danças como o frevo, sugere o ranger de rodas de carroças interioranas e os jeitos e cheiros do homem carregando a vida. Incorpora termos da linguagem mestiça brasileiras 'e também os Villa-Lobos, os mestres por puro entusiasmo. Numa das faixas, Strawa no Sertão, 'fiz uma ficção musical considerando a possibilidade de Igor Stravinsky estar vivendo no sertão brasileiro'.
Música erudita? Semi-erudita? Popular? É o quê? 'Não sei. É só música.' "
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