Existem discos que se tornam históricos com o tempo, embora às vezes, na ocasião em que são lançados, sua importância não seja ainda dimensionada. Poderia citar vários álbuns de diferentes estilos que serviriam de exemplo para essa afirmativa. O blues, em particular, por ser um estilo que atingia em seus primórdios um público restrito, porém fiel, e que com o tempo acabou se expandindo, principalmente quando algumas bandas de rock que começaram a surgir e fazer sucesso a partir dos anos 60, citavam vários bluesmen desconhecidos para o seu público, como importantes influências. Muitas gravações antológicas de importantes nomes do blues foram realizadas graças a fãs e pesquisadores, que possibilitavam essas gravações, e às vezes promoviam encontros entre importantes nomes de blues em torno de um álbum. Assim aconteceu em 1946, quando um encontro no estúdio de três lendas do blues: Memphis Slim, Sonny Boy Willliamson e Big Bill Broonzy gerou o disco Blues In The Mississippi Night. Quando o disco foi reeditado em 1991, a revista Bizz nº 68 trouxe uma matéria sobre ele e sua importância, em matéria assinada por José Emílio Rondeau e intitulada "Os Patriarcas do Blues":
"Tudo começou com uma proposta do folclorista Alan Lomax a três bluesmen que estavam de passagem por Nova York numa noite de 1946: Memphis Slim, Big Bill Broonzy e Sonny Boy Williamson. 'Olha, vocês viveram o blues a vida toda', disse Lomax, 'mas ninguém entende o que é isso ainda. Me digam: qual é a do blues?'
Sonny Boy Williamson |
A resposta foi dada num domingo, dentro de um estúdio vazio da Decca. Lomax acionou seu gravador Presto - que não usava fitas, registrando os sons direto no acetato - e os três músicos passaram a conversar e tocar, relatando a jornada do blues com casos, anedotas e canções. O resultado dessa sessão talvez seja o documento mais completo e fascinante que os interessados em conhecer as origens e o desenvolvimento do blues podem esperar encontrar.
Batizado Blues In The Mississippi Night, o álbum era de conteúdo tão potente que seus realizadores preferiram não revelar suas identidades quando o disco foi lançado nos anos 50. Conforme explica Lomax no volumoso libreto que acompanha a atual reedição do LP (via Ryko disc), ali estavam, 'pela primeira vez, operários negros falando com franqueza, sagacidade e profunda mágoa a respeito da desigualdade do sistema sulista americano de segregação e exploração (dos negros)'. Slim, Broonzy e Williamson se apavoraram com a possibilidade de verem seus nomes associados ao projeto, porque 'as pessoas iriam se vingar da nossa gente; iriam incendiar todo mundo!' A opção foi inventar nomes fictícios pra os três.
Memphis Slim |
A história que eles contaram aqui é o dos caminhos que o blues tomou através dos anos, em suas inúmeras encarnações: canções de dor-de-cotovelo, de sofrimento nas plantações de algodão do Delta do Mississippi e para aliviar a dor na prisão. Cada um dos músicos deu sua definição pessoal do estilo: 'Algumas pessoas dizem que o blues é uma vaca com saudade do bezerro', conta Bill Broonzy. 'Acho que não', remenda, 'creio que é um homem que foi recusado pela companheira.' 'Quando estou com problemas', contra-argumenta Memphis Slim, 'é a única coisa que me consola.' E depois recorda: 'Tinha um amigo meu que trabalhava construindo linhas férreas. Ele era proibido de falar com os capatazes e o trabalho fazia com que ficasse triste. Como não podia dizer o que estava sentindo, fazia uma canção a respeito daquilo e então cantava'.
Aos poucos, casos como esses vão delineando a herança do blues e a história do desenvolvimento da tradição negra numa região radicalmente hostil. Uma história de resistência e teimosia, com contornos trágicos e brutais. Memphis Slim conta, por exemplo, que era preciso ler escondido os jornais feitos por negros - sempre nos fundos de um botequim, com um vigia atento à chegada de um branco. Era uma época em que até os camponeses negros tinham liberdade para portar armas, desde que os alvos de seus disparos fossem outros negros. "
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