Palavras Domesticadas

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quinta-feira, 5 de maio de 2016

Jards Macalé no Estúdio, Gravando Contrastes (1976) - 2ª Parte

" - Esse é um disco integral. É um arroz integral. Foi um projeto todo detalhado, que compreende desde as composições e seus arranjos até o esquema de lançamento, os shows. Tudo previsto. A ideia é 'contrastes': e o disco todo é uma sucessão de contrastes da próprias músicas, da própria forma como foram tratadas. O Wagner Tiso, por exemplo, fez os arranjos de duas músicas: a 'No Meio do Mato' e a 'Sem Essa', que eu fiz pro Roberto Carlos gravar há seis anos atrás, mas ele não gravou. 'No Meio do Mato' é a história da devastação das matas do Rio de Janeiro pela construção desenfreada. Mas no fundo tem um ritmo, um ponto de umbanda, e a resistência da mata na palma da mão, a resistência de Oxóssi. Mas tem também o Paulo Moura, que já é outro estilo de arranjador. Ele fez a orquestração de 'Contrastes', que é do Ismael
Silva, e de 'Black and Blue', onde ele fez uma transa de New Orleans, de Louis Armstrong.
São tantas as pessoas e as ideias que Macalé quase se perde só de enumerar. O reggae - ritmo contemporâneo da Jamaica - se chama 'Soul Trainin' Domingueira' (*), e é dedicado 'ao black Rio', e foi gravado com Gil e a banda dos Doces Bárbaros.
- Foi ótimo, todos estavam felizes da vida. Um reggae... Meu bisavô foi um francês safado que baixou lá nas Antilhas e saiu transando com as mulatas. É claro que um reggae tem a ver comigo.
E o maestro Júlio Medaglia escreveu o arranjo de 'Cachorro Babucho', de Walter Franco, 'muito em cima de Satie, aquela loucura do balé 'Parade'. Na execução, a cantora e compositora Marlui Miranda e a temperamental cachorrinha do maestro. E mais a marchinha carnavalesca 'O Relógio do Cuco', interpretada por Formiga, sonoplasta da Rádio Globo . E a participação emocionante, emocional, da Orquestra Tabajara, de Severino Araújo em duas faixas: o 'Choro de Archanjo' ('que eu fiz especialmente para o meu personagem no filme 'Tenda dos Milagres', e pensando o tempo todo no Severino) e o 'Conto do Pintor' (´é um samba de breque do Moreira da Silva que foi originalmente orquestrado pelo Severino. Eu quis que ele reconstituísse esse arranjo').
-Foi uma coisa muito intensa, pra mim, essa participação da Orquestra Tabajara no disco. Porque o Severino Araújo foi uma das pessoas que me iniciou em música. Eu era garoto, eu me lembro, eu ia na casa dele, ele morava lá perto de mim -  e ficava vendo ele escrever aquelas pautas enormes, e aquilo pra mim era pura mágica, era uma coisa incrível. Principalmente depois que a gente ia na Rádio Nacional e eu ouvia aquilo tudo de novo, o que ele tinha escrito sendo tocado por aquela banda que era tão Glenn Miller e Tommy Dorsey, e tão brasileira, tão frevo e maracatu: aí é que era mágica mesmo. Ele ficou muito emocionado em trabalhar nessas faixas. E eu também: era uma forma de restituir tudo a ele, de completar um ciclo. Foi uma dificuldade reconstituir a orquestra: estava cada um pra um lado, tocando em lugares que não tinham nada a ver. Quando finalmente eles chegaram no estúdio, todos, estavam meio... constrangidos... desacostumados... levaram 4 horas para afinarem os instrumentos. Mas depois, de repente, voltou tudo, toda a mágica.
E por que 'Contrastes', especialmente?
- Porque somos um país de contrastes, não é? Um país em busca de uma identidade histórica, cultural, musical... Qual é o meu rosto? Qual é o meu perfil? O que é brasileiro? É esse o nosso problema, a nossa tarefa. Não é simplesmente 'buscar as raízes'. Se você for se debruçar sobre as raízes você acaba doido, você vai ver que nem nos índios do Xingu tem essa tal de raiz brasileira. Você vai ver que violão e bandolim são completamente europeus... por aí vai.
E onde 'Contrastes' (e Macalé) se situam na música brasileira, hoje?
-  Tem tudo a ver, não é? Porque este é um momento particularmente feliz. Um momento em que há atividade, não existem mais barreiras de público, de idade, todos querendo se ligar em tudo, a volta muito forte da música istrumental...
Antes de voltar ao estúdio, mais um riso e uma piscada de olho.
Só quem está meio assustado é o Guto (Graça Melo), meu produtor. Ele fica apavorado quando vê o volume de gente que entra e sai daqui. Mas quando ele vir a lista das despesas..."

(*) O nome da música depois foi modificado para "Negra Melodia"

3 comentários:

  1. Que ótimo! Acabo de descobrir o blog, bateu uma alegria! vou tentar seguir.

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  2. Obrigado pela visita e pelo comentário, Roberto. Abraço

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  3. Gostei da última frase,eu sempre escrevo ''ver'' e não ''vir'',o certo fica estranho,rs.

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