"Considerando-se um 'eterno observador', Milton puxou pelo seu encontro com os índios, no interior de Goiás, onde esteve recentemente a convite de Dom Pedro Casaldáliga. 'De lá eu trouxe a vibração de um acontecimento muito emocionante, do meu contato mais próximo com uma gente que fala coisas sérias brincando. Não era necessariamente a música indígena que me poderia influenciar, mas a sua forma de vida, a sua riqueza, como seres humanos.'
E a influência negra?
Milton não sabia exatamente de onde vinha essa influência, embora tivesse consciência de que existia. E contou:
- 'Veja você. Quando eu acabei de gravar esse meu último disco, o Sentinela, que vai ser lançado agora, trouxe aqui em casa o Wayne Shorter, com seu conjunto, para ouvir a gravação. Logo que começou a tocar Peixinhos do Mar, sua mulher, a portuguesa Ana Maria, passou a acompanhar a música direitinho, cantando junto. Eu parei o gravador para saber como é que ela conhecia essa composição, inédita ainda. Ela me disse que essa música ela cantava em Angola, quando era criança. E o mais impressionante é que a segunda parte ela não soube acompanhar, exatamente a parte que fala de nós que viemos de outras terras, de outros mares... a parte mais mineira da música!'
Minas estava para a África assim como os peixinhos estavam para o mar. Vamos lá! E a influência oriental? Com a bala entre os dedos, sem desembrulhá-la, Milton foi pesquisando, eu também:
- 'Talvez por causa do ambiente fechado de Minas que é muito espanhol...'
- '... sim, as mulheres de véu, carpideiras em volta do túmulo...
- '... com todas aquelas cidades coloniais...'
-... e as ladainhas escalando as ladeiras...
- ... tudo isso vai entrando pela pele da gente!'
E completava: 'em Minas, a maioria dos compositores faz música na base do três por quatro. Por isso, a valsa representa para nós o que o samba representa para o carioca.' A nossa pacata, curiosa e indecifrável vidinha mineira, revelava-se, portanto o compasso de um baile antigo, exatamente como eu sempre delirei, ao ritmo do realejo, sob a folia dos reis.
- Pois é...
- 'Pois é...'
Permita-me supor que nossas reticências significavam o recíproco entendimento. E me calava, cada vez mais à vontade. Depois recomeçávamos, tateando-nos, descobrindo-nos:
- Houve algum momento que decidiu a sua carreira?
- 'Olha, houve muitos momentos decisivos. Eu transei música a vida inteira, desde que me dei por gente. Aos cinco anos, ganhei uma gaita de boca na qual aprendi a procurar as notas. Aos sete meu pai me deu uma sanfona, aos catorze anos tomei o violão que minha mãe recebera de presente. Achei que ele era mais meu do que dela.'
Aos dezoito, Milton ganhou o que ele considera um presente do céu: depois de criar três filhos adotivos, dona Lília ficou grávida e nasceu Jaceline. Nessa idade, o rapaz não tinha dúvidas:
- Bastou-me dedilhar as cordas do violão para sacar a minha vocação definitiva. Eu era músico.'
A vocação definitiva de Milton, entretanto, já se revelara em outras cordas, as vocais. O menininho de calças curtas aprendeu muito cedo a explorar sozinho esse dom inigualável. A versatilidade de seu timbre de voz, aliada à criatividade exuberante, permitiu-lhe fazer mil arranjos em cima das músicas de outros compositores, que acabavam tão enriquecidas que tornavam quase irreconhecíveis. 'Inventando e musicando histórias desde criança, adquiri também uma certa facilidade para repentista.' Um lento e e permanente trabalho que o transformaria, sem dúvida, no melhor intérprete brasileiro.
- 'Comecei a compor quando me mudei para Belo Horizonte. Formado em contabilidade, deixei Três Pontas para trabalhar num escritório da capital. À noite me encontrava com o pessoal da música, inclusive o Márcio Borges, meu primeiro parceiro.'
Parceria, companheirismo, camaradagem, amizade: a constante presença de pessoas eleitas para a sua corte representou uma característica essencial na personalidade do artista e do homem. A começar da molecada de infância, já atraída pelo seu talento. Milton nunca mais dispensou a companhia de uma roda numerosa, amigos escolhidos sobre suas raízes profundas, como Wagner Tiso, vizinho de rua, conterrâneo, contemporâneo, cúmplice e comparsa na vida, na música, desde a adolescência, sempre juntos:
- 'Nós somos a cruz um do outro'.
Agregando gente boa de comprovada fidelidade, surgiu o primeiro conjunto vocal: Wagner, Marilton Borges, Marcelo, Turinha e Milton. O grupo foi descoberto pelo produtor de um programa de jazz da TV Itacolomi, em Belo Horizonte, quando tocava numa boate japonesa, Fujiama, uma zona brava, perto dos espigões do IAPI. Nos estúdios da emissora - último andar do edifício Acaiaca, no centro da cidade - foi dada a partida para o sucesso, já suficientemente conhecido.
- 'Quer mais um café?'
- Não, obrigado.
Anoitecia sob o suave declínio da luz e do papo. Milton ainda se reanimava:
- 'Sabe de uma coisa? O filme Jules e Jim influiu decisivamente para que eu começasse a compor. Eu assisti em Belo Horizonte. Fiquei abaladíssimo. Saí do cinema decidido a ser alguma coisa na vida. Não sei nem te explicar. Fiquei comovidíssimo. Fui direto para a casa do Márcio e danei a compor.'
Que coincidência, cara! Também a mim, o filme provocara uma sísmica impressão. Quem sabe que não teria cruzado com o Milton no mesmo cinema, ambos segredando semelhante espanto, ele transbordando música que nem o latão de leite, eu armazenando dúvidas do mais puro mineirismo. Revi Jules e Jim meia dúzia de vezes, rasgando-me o coração para a fascinante insensatez humana. E nem o mais profundo sortilégio me faria supor que a história daquele trio amoroso, que tanto me tocara, haveria de provocar igual deslumbramento naquela figura genial, agora do meu lado. Mesmo nas vidas mais paralelas seria sempre possível descobrir surpreendentes pontos de encontro.
E por falar, ou pensar, em semelhanças, qual seria o seu posicionamento político?
- 'Esse posicionamento é muito natural na minha música, a partir do momento em que a gente canta coisas nas quais acredita. A gente canta uma esperança, uma crença no homem. E quando se canta a verdade da gente, está se tomando uma posição política'.
Pausa, silêncio.
- 'A maneira mais forte de vencer essa poluição que está a fim de acabar com a vida da gente, com esses milênios que pesam sobre os nossos ombros, é a união. Entendo a união pela amizade...'
- '... a amizade teria então para você a conotação política da unidade?
- 'Isso, me ajuda aí. Isso mesmo. Por causa disso é que eu não gosto de cantar sozinho, de gravar meus discos sozinho. Quero sempre muitas vozes ao meu lado, comigo, somando, um monte de vozes.'
No disco Sentinela, Milton usa um coro de 78 vozes, formado por todos os seus amigos, mesmo aqueles que não cantam nem são músicos, como o Hildebrando, nosso cúmplice em comum, patrocinador do encontro.
- 'Sentinela é um grito de vigia, do vigia de um amigo morto. Apesar de falar em morte, é um grande canto de vida. Essa música foi composta em 78, quando eu queria cantá-la com os dominicanos. Mas eles estavam desaparecidos, torturados e presos. Agora, o disco faz parte do meu canto de vida, do meu canto de amizade.'
Estamos os dois cansados. Rascunho as minhas anotações finais: 'este é o primeiro disco gravado pelo Milton com a Ariola. A onda de que ele voltaria para a Odeon não tem razão de ser. Intriga? Interesses do jogo de mercado? Sei lá'.
- 'Espero que eu tenha me saído bem'.
Milton despedia-se com o mesmo sorriso frouxo da entrada. Será que eu consegui conquistar-lhe uma pontinha de intimidade? Será que eu poderia chamá-lo de Bituca, como seus amigos de sólidas raízes mineiras?
- Agora, Milton, eu é que espero me sair bem.
Aleluia. "
- Pois é...
- 'Pois é...'
Permita-me supor que nossas reticências significavam o recíproco entendimento. E me calava, cada vez mais à vontade. Depois recomeçávamos, tateando-nos, descobrindo-nos:
- Houve algum momento que decidiu a sua carreira?
- 'Olha, houve muitos momentos decisivos. Eu transei música a vida inteira, desde que me dei por gente. Aos cinco anos, ganhei uma gaita de boca na qual aprendi a procurar as notas. Aos sete meu pai me deu uma sanfona, aos catorze anos tomei o violão que minha mãe recebera de presente. Achei que ele era mais meu do que dela.'
Aos dezoito, Milton ganhou o que ele considera um presente do céu: depois de criar três filhos adotivos, dona Lília ficou grávida e nasceu Jaceline. Nessa idade, o rapaz não tinha dúvidas:
- Bastou-me dedilhar as cordas do violão para sacar a minha vocação definitiva. Eu era músico.'
A vocação definitiva de Milton, entretanto, já se revelara em outras cordas, as vocais. O menininho de calças curtas aprendeu muito cedo a explorar sozinho esse dom inigualável. A versatilidade de seu timbre de voz, aliada à criatividade exuberante, permitiu-lhe fazer mil arranjos em cima das músicas de outros compositores, que acabavam tão enriquecidas que tornavam quase irreconhecíveis. 'Inventando e musicando histórias desde criança, adquiri também uma certa facilidade para repentista.' Um lento e e permanente trabalho que o transformaria, sem dúvida, no melhor intérprete brasileiro.
- 'Comecei a compor quando me mudei para Belo Horizonte. Formado em contabilidade, deixei Três Pontas para trabalhar num escritório da capital. À noite me encontrava com o pessoal da música, inclusive o Márcio Borges, meu primeiro parceiro.'
Parceria, companheirismo, camaradagem, amizade: a constante presença de pessoas eleitas para a sua corte representou uma característica essencial na personalidade do artista e do homem. A começar da molecada de infância, já atraída pelo seu talento. Milton nunca mais dispensou a companhia de uma roda numerosa, amigos escolhidos sobre suas raízes profundas, como Wagner Tiso, vizinho de rua, conterrâneo, contemporâneo, cúmplice e comparsa na vida, na música, desde a adolescência, sempre juntos:
- 'Nós somos a cruz um do outro'.
Agregando gente boa de comprovada fidelidade, surgiu o primeiro conjunto vocal: Wagner, Marilton Borges, Marcelo, Turinha e Milton. O grupo foi descoberto pelo produtor de um programa de jazz da TV Itacolomi, em Belo Horizonte, quando tocava numa boate japonesa, Fujiama, uma zona brava, perto dos espigões do IAPI. Nos estúdios da emissora - último andar do edifício Acaiaca, no centro da cidade - foi dada a partida para o sucesso, já suficientemente conhecido.
- 'Quer mais um café?'
- Não, obrigado.
Anoitecia sob o suave declínio da luz e do papo. Milton ainda se reanimava:
- 'Sabe de uma coisa? O filme Jules e Jim influiu decisivamente para que eu começasse a compor. Eu assisti em Belo Horizonte. Fiquei abaladíssimo. Saí do cinema decidido a ser alguma coisa na vida. Não sei nem te explicar. Fiquei comovidíssimo. Fui direto para a casa do Márcio e danei a compor.'
Que coincidência, cara! Também a mim, o filme provocara uma sísmica impressão. Quem sabe que não teria cruzado com o Milton no mesmo cinema, ambos segredando semelhante espanto, ele transbordando música que nem o latão de leite, eu armazenando dúvidas do mais puro mineirismo. Revi Jules e Jim meia dúzia de vezes, rasgando-me o coração para a fascinante insensatez humana. E nem o mais profundo sortilégio me faria supor que a história daquele trio amoroso, que tanto me tocara, haveria de provocar igual deslumbramento naquela figura genial, agora do meu lado. Mesmo nas vidas mais paralelas seria sempre possível descobrir surpreendentes pontos de encontro.
E por falar, ou pensar, em semelhanças, qual seria o seu posicionamento político?
- 'Esse posicionamento é muito natural na minha música, a partir do momento em que a gente canta coisas nas quais acredita. A gente canta uma esperança, uma crença no homem. E quando se canta a verdade da gente, está se tomando uma posição política'.
Pausa, silêncio.
- 'A maneira mais forte de vencer essa poluição que está a fim de acabar com a vida da gente, com esses milênios que pesam sobre os nossos ombros, é a união. Entendo a união pela amizade...'
- '... a amizade teria então para você a conotação política da unidade?
- 'Isso, me ajuda aí. Isso mesmo. Por causa disso é que eu não gosto de cantar sozinho, de gravar meus discos sozinho. Quero sempre muitas vozes ao meu lado, comigo, somando, um monte de vozes.'
No disco Sentinela, Milton usa um coro de 78 vozes, formado por todos os seus amigos, mesmo aqueles que não cantam nem são músicos, como o Hildebrando, nosso cúmplice em comum, patrocinador do encontro.
- 'Sentinela é um grito de vigia, do vigia de um amigo morto. Apesar de falar em morte, é um grande canto de vida. Essa música foi composta em 78, quando eu queria cantá-la com os dominicanos. Mas eles estavam desaparecidos, torturados e presos. Agora, o disco faz parte do meu canto de vida, do meu canto de amizade.'
Estamos os dois cansados. Rascunho as minhas anotações finais: 'este é o primeiro disco gravado pelo Milton com a Ariola. A onda de que ele voltaria para a Odeon não tem razão de ser. Intriga? Interesses do jogo de mercado? Sei lá'.
- 'Espero que eu tenha me saído bem'.
Milton despedia-se com o mesmo sorriso frouxo da entrada. Será que eu consegui conquistar-lhe uma pontinha de intimidade? Será que eu poderia chamá-lo de Bituca, como seus amigos de sólidas raízes mineiras?
- Agora, Milton, eu é que espero me sair bem.
Aleluia. "
Nenhum comentário:
Postar um comentário