Em 1980, o jornal musical Canja trazia uma boa matéria com Milton Nascimento. Assinada por Ricardo Gontijo, a matéria trazia um bate-papo informal com esse grande músico brasileiro. Falou de sua vida, de sua condição de filho adotado e do forte preconceito que sofreu por ser negro, numa cidade carregada de um racismo explícito, que o fazia sofrer e se sentir rejeitado pela sociedade, apesar do carinho com que foi criado por seus pais adotivos, uma família branca de classe média. Também fala de música, sua carreira, etc. Abaixo, a transcrição da matéria:
"Conversa de mineiro tem mais silêncio do que palavra. Ela se arrasta, entre reticências, por túneis e labirintos, cheios de surpresas. Mineiro fala olhando o vago que é de onde busca a memória, suas histórias, seu jeito especial de puxar palha, puxar prosa, ir contando as coisas, devagar, como se o tempo se desfiasse muito lentamente, de maneira quase imperceptível. É sempre uma conversa gostosa, rica, carinhosa, que se desvenda como flor, abrindo-se por inteiro quando menos se espera. Mas para deixar-se desabrochar, entregando-se, o mineiro precisa antes ter certeza de que o interlocutor merece sua intimidade. Por isso ele ouve mais do que fala, até assegurar-se de que o outro já padece de sua confiança. Esse paciente arranca-papo torna-se ainda mais comovente quando se trata de uma entrevista com a própria esfinge mineira, Milton Nascimento. E feita por outro mineiro, também avesso a muita falação, eu.
- Oi... E mais não dissemos. Apenas a perspectiva de estar diante do Milton para entrevistá-lo já me dera uma vontade apertada de fazer xixi. Coisa de mineiro. Quando cheguei ao seu apartamento, na Barra, a porta demorou-se duas chamadas na campainha para se abrir. Torci pra que ele não estivesse, para que algum imprevisto impedisse o nosso encontro. Coisa de mineiro, que ele entendeu quando lhe contei. Mas, a danada da Bete, sua irmã de criação, abriu a porta e me mandou que eu entrasse. Não tive saída. Logo apareceu o moço, também armado de um mesmo sorriso frouxo, meio sem graça. Depois do oi de entrada, arrisquei-me:
- Preciso ir ao banheiro...
Mais aliviado, fui conduzido para um cantinho a casa, dois degraus abaixo da sala, onde nos acomodamos os dois num sofá-cama, sozinhos, desconfiados, cara a cara, timidez contra timidez, ambos recorrendo com os olhos ao mar que se via dali, pela janela, a quinhentos metros de distância. O mar com que ambos sonhamos do alto de nossas gordas montanhas de ferro. Ele precisa começar. Então lhe perguntei se já conhecia o Canja. Sim, já conhecia. Silêncio. Era preciso continuar. Então desabafei o peito e mandei ver. Um momento para esse parênteses fundamental: eu sabia das queixas do Milton em relação aos repórteres brasileiros que costumavam brindá-lo com perguntas tolas e respostas distorcidas. Na Argentina, ao contrário, ele encontrara jornalistas que o pouparam das impropriedades habituais da nossa imprensa. Isso afligia-me. E eu, como me sairia?
- Milton, eu ouvi a gravação do seu último disco e, mais do que nunca, fiquei impressionado. Tocou-me especialmente o canto gregoriano, talvez porque ele me tenha marcado desde a infância, na voz das irmãs beneditinas, em Belo horizonte. De onde vem o seu canto gregoriano?
- 'De uma origem muito semelhante, como tudo em Minas, aliás. Ele vem também de vozes beneditinas, ou das missas cantadas em Três Pontas, da Semana Santa extremamente solene, das festas religiosas que eu assistia emocionado, ainda de calças curtas.'
Em algumas igrejas de Minas existia a tribuna, reservada às classes sociais mais privilegiadas. Essa tribuna ficava entre os lugares destinados ao povo e ao coro. Era dali, sob a carinhosa proteção do avô, figura respeitada na sociedade local, que Milton assistia à missa, olhos e ouvidos pregados na música, nas vozes, no som intemporal do órgão.
- 'Tudo aquilo me fascinava demais. Desde cedo eu percebia a intensa reverberação enchendo o espaço com uma sonoridade incrível, ecoando entre os vitrais, fundindo-se no tempo, na minha alma, no meu espanto de criança especialmente sensível para a música'.
O menino assim extraordinariamente dotado faria outra descoberta maravilhosa: na cozinha de sua casa ele podia reproduzir uma reverberação igual à da igreja, desde que estivesse sozinho porque a presença de outras pessoas prejudicava, aos seus afinados ouvidos, a irradiação do som. E assim ele começou a cantar sob o delírio da própria voz enchendo o espaço usualmente ocupado pela fumaça do fogão de lenha. Foi entre sombras e brasas que o timbre humano mais versátil da música popular brasileira subiu aos céus, pela chaminé.
- 'Acima de tudo, a liberdade que eu pude desfrutar na minha casa permitiu-me desenvolver o meu lado criativo, artístico.'
Milton era o mais velho dos três filhos adotivos do casal Zino e Lilia. E o único negro da família, o que despertava maliciosos comentários na sociedade da época, aquela sociedade bichada do interior de Minas que debulhava o terço com as mãos sem tirar os olhos do buraco da fechadura vizinha. Em contraste com a mesquinhez da cidade, os pais de Milton souberam acolhê-lo, e aos outros dois irmãos, Fernando e Bete, com muito amor, muito calor:
- 'Eu nunca me senti filho adotivo. Nem sei o que é isso. Fomos criados como filhos de sangue, igualzinho aos outros meninos da nossa idade. Não havia diferença. Eu gostei tanto de ter sido adotado dessa maneira que eu quero adotar umas duas ou três crianças na minha vida...'
Se em casa havia liberdade e afeição, na rua a situação se invertia. 'Muita gente se espantava porque todo mundo lá em casa era branco e só eu negro. Fuxicavam muito. Na verdade, fuxicavam demais'. Milton sofreu na carne a discriminação odiosa, o preconceito feroz, a mediocridade implacável de uma gente hipócrita, cujo amor ao próximo não incluía negros e pobres, que pregava a humildade sem despojar-se de uma única joia. Milton tentava compensar os desaforos alheios no cafuné familiar.
- 'Eu gostava muita da minha casa, eu me sentia bem ali. Mas não gostava da cidade, que me asfixiava.'
(continua)
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