Palavras Domesticadas

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terça-feira, 24 de maio de 2016

Milton Nascimento - Jornal Canja (1980) - 2ª Parte

"Milton me parecia esconder o quanto de fato a cidade o maltratava, porque eu conhecia a intolerância mineira, o antigo moralismo de nossa gente, sabia como o tradicionalismo sobrevivera varrendo seu lixo para debaixo do tapete. Ouvindo Milton falar, puxando a memória do vago, eu o entendia ofendido e humilhado indo refugiar-se no interminável quintal de sua casa, ao pé das jaboticabeiras, das goiabeiras, encarapitado nos últimos galhos da confidente mangueira. Se não estava no lambuzar-se de frutas e terra molhada, devia estar viajando entre as estrelas.
- 'No rastro do velho Zino, astrônomo por vocação, conheci o céu como a palma de minha mão.'
Além do professor de matemática nos colégios de Três Pontas, o pai de Milton formara-se em eletrônica, homem de muita lógica, paciente, generoso. Seu maior interesse, no entanto, não se limitava aos estreitos limites da propriedade, mesmo incluindo o quintal, nem se confinava às fronteiras da província, e muito menos se contentava com o alcance de uma raiz quadrada. Zino era um navegante do universo! De olho no telescópio, lá ia o audacioso desbravador aventurando-se pela noite imensa, perseguindo a Ursa Maior, os satélites de Júpiter ou o Cruzeiro do Sul. E Milton embarcava no fascínio do pai, sabendo de cor a posição dos planetas.
- 'Bete! Bete! Me traz umas balas aí... estão dentro da minha bolsa, no quarto.'
O grito do viajante estelar acordou-me do torpor imaginário. Fica fácil, fácil, eu já ia de carona para muito longe dali. Voltei rapidinho à realidade, descobrindo que Milton não fumava nem bebia. Isto é, não bebia como antigamente. Em compensação chupava intermináveis sacos de balas. 'Um dia eu fui à praia e encontrei a moçada morena, legal, bonita. Eu me sentia um caco, de ressaca, podre. Bebia muitas vezes para espantar a timidez, de bobeira. Aí resolvi parar com isso. Tudo ficou muito melhor. Agora eu faço o que quero, numa boa, sem grilo.' Eu é que estava seco por um gole, mas com vergonha de pedir.
- 'Quer  uma bala?'
- Não, obrigado.
Bete me ofereceu um café, eu aceitei. Estávamos os três no apartamento, mas a irmã de Milton se mantinha afastada, discreta. Criatura doce, prestativa. Enquanto eu me servia ninguém falava. Aproveitei a pausa para esticar um vago olhar pela janela. Final de tarde, clima indeciso. O dia poderia ter sido radioso não fosse o nevoeiro seco. Milton, ao meu lado, aguardava.
- 'Devia ser um barato a sua casa...'
- Era mesmo...
Retomadas as lembranças, regressamos a Três Pontas. Milton contaminara-se pela liberdade familiar, esforçando-se desde criança por compartilhá-la com os outros. E assim trouxe para o quintal um bando cada vez maior de moleques das redondezas. Não lhes oferecia apenas uma divertida ciranda no fundo do pomar. Na verdade, a principal atração para seus numerosos amigos era o seu talento, inevitavelmente precoce. Reunia a meninada e contava histórias criadas pela sua inesgotável imaginação. Bruxos, fadas, anões, bichos movimentavam-se num mundo encantado onde cada personagem tinha o seu timbre de voz característico, inconfundível. Autor, ator e cantor, o menino hipnotizava outros meninos, até bem maiores que ele. Um teatro musicado, um musical dramatizado, uma peça, um ensaio, uma criação, enfim, deslumbrante: engrossava a voz ao imitar o caçador - 'não tenha medo, Zezinho.'
Ou recorria ao falsete no caso da fada: 'Eu venho de uma estrela bem distante...'
Devia ser uma curtição inesquecível aquela roda embalada pela fantasia do Milton garoto. À minha frente, eu continuava-lhe dando corda à memória. E ele se lembrou de Porcolitro!
- 'A história do Porcolitro durou oito anos. Daí você você pode ter uma ideia do que eu inventei para sustentar tanto tempo de aventuras. Cheguei até a casá-lo com a rainha do mar, Iara, que destronou Netuno...'
Era um litro de leite muito levado, que não tomava nenhum cuidado, um desastrado. Derramou-se todo pelo chão. Os outros litros pedindo que ele andasse direito para não se derramar de novo. Que nada. O litro de leite era mesmo sem jeito, e derramou-se repetidas vezes. Aí apareceu uma fada que o transformou, por castigo, num porquinho, batizando-o de Porcolitro.
- 'Esse foi meu primeiro sucesso!'
Tanto sucesso que a carreira do desajeitado litro de leite durou quase uma década, simplesmente porque a plateia não o esquecia, exigindo que ele reaparecesse pela magia daquele garoto pretinho, afinadíssimo, cheio de truques, um prestigitador da palavra, do som, ele próprio um bruxo, mas um bruxo do bem. Milton recorria aos elementos da sua intimidade, como o leite, transbordando dos garrafões à porta da cozinha, para transformá-los em algo animado, encantado. Era um mágico a tocar as pedras, os caroços de fruta, as folhas e os galhos com sua varinha de condão para lhes dar vida, posta em som, em ritmo, em harmonia.
- Milton, tudo isso que você conta parece alegre, tem sabor de menta e liberdade. No entanto, sua música reflete o cerco de minas, que eu conheço bem, as nuvens de chumbo pesando sobre amaldiçodos herdeiros. Como é que conviveu em você a natureza solta no quintal e o sufoco da densidade mineira?
- 'Eta pergunta boa, sô!'
Senti-me recompensado.
- 'Vou tentar responder'.
Pausa.
- 'A minha alegria, a minha liberdade dentro de casa, junto à família, aos amigos, sofriam violento contraste com a discriminação que eu sentia dentro da sociedade daquela época. Então eu era ao mesmo tempo feliz e atormentado'.
A beleza das plantas ou das estrelas, o carinho da amizade tocavam-no tão intensamente quanto a vigilância mesquinha, a fofoca, a intriga dos medíocres.
- Até que achei que aquilo não era para mim. Eu precisava deixar Três Pontas'.
Enquanto eu anotava, Milton preocupava-se em ressaltar que se referia ao passado, porque a cidade hoje é diferente, melhor, bem melhor. Foi naqueles tempos sombrios que o menino descobriu outro refúgio, outra fonte de inspiração, o cinema. Essa paixão também se tornaria inabalável, cultivada desde os tempos do pulgueiro da província até hoje. Holywood, os astros e os ídolos de adolescência o acompanhariam para sempre, reservando aos musicais americanos um lugar destacado no seu baú de ossos. Ali deviam repousar, por exemplo, os discos de Bing Crosby, em 78 rotações. Divertia-se ainda em imitar a peruana Yma Sumac, cuja voz embriagou nossa geração. Ao contrário do que eu suponha, a música clássica não lhe provocou maior entusiasmo quando adolescente. Cresceu atento às cantigas de roda, à cadência cabocla do congado, às canções populares anônimas, aos lamentos religiosos. Sensível e criativa, a criança armazenava todo som que seu privilegiado radar captava.
- 'Impressionava-me a musicalidade do povo, presente na cantoria das lavadeiras à beira dos córregos, entre os pescadores dos rios, junto aos boiadeiros. Essa musicalidade eu pude observar no país inteiro, não só em Minas. A gente atravessa a fronteira de qualquer estado e a encontra sempre variada, diferente. Mesmo em Minas, dá pra sentir a diferença de região para região. O que se ouve às margens do Jequitinhonha é uma coisa, o que se ouve no sul de Minas é outra'. "

(continua)

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