A revista Rock, a História e a Glória publicou em 1976 em sua edição nº 17 uma entrevista com Sérgio Sampaio, um dos mais brilhantes cantores e compositores de sua geração. A matéria é assinada por Tania Carvalho:
"Seu último elepê foi gravado há três anos. O que determinou esse período de entressafra?
Eu fiz um disco na Phillips na fase pós Bloco na Rua. Sabe como é que é, estourou uma música automaticamente a gravadora te pega pelo braço e te joga dentro de um estúdio. O disco não ficou comercial quanto a gravadora achava que deveria ser. Na verdade, não tinha outro Bloco. Depois desse disco eu fiz ainda um compacto e resolvemos de comum acordo que eu deveria dar um tempo. Naquela época as coisas estavam tomando rumos que eu não queria: muito sucesso, muita televisão, muito São Paulo. Eu estava sem tempo pra sentir e, obviamente, para compor. Fui embora para o Espírito Santo largando tudo. Fiquei lá por um tempo, me casei e um dia voltei a fim de reestruturar todas as coisas.
O fato de você não ter aproveitado o seu período de sucesso não representaria um grande perigo para a continuidade da sua carreira?
Sem dúvida eu poderia ter aproveitado muito mais a fase de loucura, do sucesso. Acontece que sou uma pessoa muito sensitiva. Não sou um racional, intelectual que faz as coisas cerebralmente. Naquela época eu era um compositor novo com relação à minha obra. Eu sabia que tinha muita coisa pra dar. Mas para isso eu precisava de tempo. Não adianta você ser uma pessoa que sabe o que quer porque de repente as coisas atingem determinados níveis que as pessoas começam a te pegar pelo braço. Eu não sou uma pessoa que se deixa carregar. Outra coisa: se eu não tivesse parado naquela época, até hoje eu seria o rapazinho do Bloco na Rua. E eu sempre quis ser Sérgio Sampaio. Hoje eu sou um artista. O importante na história sou eu e não minha obra. Essa vem depois porque nasce de mim.
E como você reagirá agora a um novo sucesso?
Agora eu seguro a barra. Sei o que é o sucesso, o que ele representa e pra onde ele vai e te leva. Tem um outro aspecto, eu sou um compositor popular, a minha origem é no povo, sou filho de maestro de banda de música que compunha dobrados. Essas são as minhas raízes mas naquela época eu não compreendia isso. Era também uma época de muita confusão, onde as coisas se modificavam com uma velocidade incrível. O que se fazia num dia já era velho no outro. Ou pelo menos tido como. Eu não conseguia me situar e nem tinha tempo para fazer uma análise da minha situação. Eu não estava preocupado se o que fazia era bom ou ruim mas sim se era real. Foi quando eu resolvi parar para ouvir.
Você não tem medo de se dizer um compositor popular? Pra muita gente popular é sinônimo de falta de qualidade.Eu faço o que sinto. E os meus sentimentos são populares. Se é bom ou ruim... não sei não. Eu gosto muito. Acredito, também, que ninguém que faça música no Brasil possa negar as suas raízes populares. Principalmente eu que nasci e me criei no interior ouvindo rádio. Minhas paixões sempre foram Paulinho da Viola, Roberto Carlos, Nélson Gonçalves, Adelino Moreira. Eu toco violão sem saber música. Eu aprendi a cantar cantando. Rock? Só conheci aqui no Rio de Janeiro. O que é que podia sair disso tudo? Um compositor popular.
Na sua opinião qual o motivo que impelia as pessoas a cobrarem demasiado de cada novo compositor que apareceu após o Tropicalismo?
Na época que Caetano, Chico, Gil e mais uma porção de gente apareceu, todas as artes brasileiras estavam valorizadas. Existia o Cinema Novo, o Teatro Oficina e por aí vai. A atenção das pessoas não estava voltada para um só grupo ou para determinada manifestação artística. De repente deu-se um branco e só sobrou a música, e os artistas mantinham-se os mesmos. Você pode ver que hoje estamos na fase dos dez anos depois. Um dia pensou-se: quem é que vai substituir esses caras? Fez-se a loucura. Aparecia um nome e todas as atenções convergiam para essa pessoa. Os novos compositores eram ansiosamente esperados e desesperadamente cobrados. Quando o cara fazia um disco já se questionava o que ele faria depois ou mesmo se aguentaria o sucesso. Era uma barra muito pesada porque a criação era deixada pra trás. Eu mesmo fui chamado de gênio. Ora, se eu fosse gênio eu voltava pra minha terra. A história da música popular brasileira depois do Tropicalismo é quase uma fábula: a galinha não tinha mais pintinhos. Fez-se uma reunião de cúpula e decidiu-se que a única maneira de fazer pintinhos era quebrando os ovos. E tome de quebra-quebra. Tiravam bichinhos lá de dentro ainda com os olhinhos fechados e obrigavam a andar.
Ela não demorou não. As pessoas é que estavam com dificuldade de enxergar. E porque essa compulsão de querer gente nova? Os ditos velhos continuam fazendo até hoje um trabalho cada vez mais novo. O que não é possível é buscar em cada compositor que aparece a nova solução para os problemas do mundo. Assim ninguém se cria. Quer ver um exemplo? O Roberto Carlos teve uma carreira lenta, ficou batalhando sete anos pra conseguir alguma coisa. O próprio Caetano levou muito tempo apertando botão na televisão até se impor*. E isso deu tempo para que eles se aclimatassem com a sua própria carreira. Quando eles chegavam diante de um microfone sabiam exatamente o que tinha de fazer. Eu, por exemplo, não fiz nenhum show porque não sabia o que iria fazer no palco. Eu não tive tempo de amadurecer a minha carreira.
E a Grã-Ordem Kavernista. O que era aquilo?
Foi o desespero. Na verdade o Raul Seixas sempre foi louco e com mania de fundar sociedades. Na época que a gente fez esse disco ele era produtor da CBS e vivia muito tolhido porque já era o grande artista que todo mundo hoje conhece. E nós éramos grandes amigos, nossas opiniões combinavam muito e a nossa vontade de fazer alguma coisa era muito grande. Chamamos o Edy Star e a Miriam Batucada e fomos para o estúdio. O nome da sociedade saiu na hora. O kavernista pintou porque naquela época a gente falava muito em volta às origens, aquele papo que os homens iriam viver em cavernas depois da explosão da bomba atômica, essas maluquices. Agora, sem dúvida foi um disco delicioso de ser feito. Chamamos o porteiro pra cantar, pegávamos gente na rua pra entrar no coro. Uma grande confusão.
Raul Seixas e Sérgio Sampaio em 72 |
A nossa fome era do mesmo quilate. A garra de fazer coisas era igual. A gente se completava muito. Não tenha dúvidas que hoje sou compositor de música popular brasileira enquanto o Raulzito tem uma visão mais cósmica da arte. Agora nós nos entendemos musicalmente porque eu gosto principalmente das coisas que Raul diz através da música. E ele curte também demais a minha poesia. E assim a gente vai se entendendo. O nosso gosto é que não combina mesmo. Uma vez levei o disco do Paulinho da Viola pra ele escutar. No outro dia voltei e o disco estava no mesmo lugar. Ele me explicou: até que eu coloquei o disco na vitrola, mas quando chiou eu tirei. De Paulinho da Viola, Raulzito só conhece o chiado antes da música.
Voltando ao Bloco. Muitas pessoas encararam a música como uma mensagem de participação. Ela era realmente?Minha música não era uma bandeira. Na verdade era um desabafo muito grande. E, no sentido geral, ela fala da marcação de touca, da bobeira. O engraçado é que depois do meu afastamento ela ganhou um novo sentido. Eu canto com uma inflexão o 'há quem diga que eu dormi de touca'. E para ser sincero eu ainda quero botar o meu bloco na rua.
Você estava em Cachoeiro quando explodiu o Tropicalismo. O que você achou de tudo aquilo?
Eu fazia parte de um grupo de intelectuais, é claro. Nós não tínhamos televisão mas fazíamos aglomeração em frente à loja de eletrodomésticos. Eu fiquei felicíssimo quando pintou o Tropicalismo. Eu até disse no meu programa de rádio em Cachoeiro: 'Agora eu quero ver. Sempre se imitou o jeito de cantar e de compor. Quem é que vai conseguir imitar os versos de Caetano?' O Tropicalismo também aumentou a minha vontade de fazer coisas minhas. Agora, eu não fiquei de nenhum lado. Só quando cheguei ao Rio é que soube que havia uma polêmica desgraçada. Eu sempre estive onde tinha música. No meu programa tocava Roberto e Erasmo Carlos, Orlando Silva e Caetano Veloso. Até hoje é assim: só escuto o que gosto. E não ouço discos que tenham nomes complicados.
Quais são os maiores entraves para um artista que não está na crista do sucesso mostrar seu trabalho?O primeiro entrave é a mistificação em torno do sistema empresarial. Para todo mundo artista sem empresário não trabalha. É preciso acabar com isso e acho que a minha geração artística está conseguindo terminar com esse mito pois estão criando uma nova filosofia e novos empresários adaptados a um novo tipo de trabalho. Com relação a disco parece que de um tempo pra cá as gravadoras resolveram que não tinham mais dinheiro pra fazer experiências. E resolveram só jogar no certo embora nem elas saibam o que é certo. Nas rádios, os artistas têm que pleitear um lugar no famoso 'listão' que só comporta 60 músicas. E, por fim, para fazer um espetáculo em teatro é necessário que alguém assuma as despesas que uma atividade empresarial sempre acarreta. E é muito difícil que alguém tope fazer um show com um artista que não é garantia de bilheteria. Ninguém acredita num artista novo. E os empresários são todos os empresários no sentido estrito da palavra.
Pra terminar, fala um pouquinho do seu disco novo.
A gravadora é a Continental. O produtor é Roberto Moura e o diretor musical é o João de Aquino. Eu tinha muito material e resolvemos que cada um de nós iria fazer uma seleção. Feito isso tiramos as músicas unânimes e debatemos horas as restantes. O primeiro cuidado que o Roberto e o João tiveram foi na escolha do arranjador. Nós precisávamos de alguém que soubesse respeitar uma harmonia quadrada. Se eu faço uma música com dois acordes naturais quero que ela seja executada, em termos de arranjo, como eu criei, sem muito inventivismo. O arranjador é o Gaya. De resto é um trabalho bastante profissional encarado seriamente por pessoas que não estão a fim de brincadeira."
*Ele se refere ao programa Essa Noite se Improvisa, em que Caetano se apresentava no início da carreira. O apresentador dizia uma palavra e o concorrente apertava um botão para cantar uma música em que a palavra constava na letra
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