Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 5 de março de 2021

O Rock Nordestino (História do Rock Brasileiro Vol. 2)


 A revista Super Interessante lançou há alguns anos uma ótima série de quatro revistas falando sobre o rock brasileiro, dividida por décadas. Na revista sobre os anos 70 há um capítulo sobre o rock que a partir daquela década passou  a ser criado por artistas nordestinos, que segundo a publicação "juntaram a viola e a rabeca de sua infância com a guitarra da adolescência". Essa tendência ganhou força com Alceu Valença, e foi ganhando forma ao longo do tempo com outros artistas como Zé Ramalho, Fagner, Belchior e outros. Segue abaixo o texto:

"O Mamulengo e a Cantriz. Cada um deles encarnou um personagem do povo em sua imagem de astro. Alceu Valença, pernambucano de São Bento do Una, levou a graça e os trejeitos de um tipo de teatro infantil festejado nas feiras livres do Nordeste, os bonecos de pano, vulgo mamulengos. No Recife, rumo dos meninos do interior que queriam estudar, cruzou o violonista Geraldo Azevedo e produziram o álbum Quadrifônico (1972).

Teatro também corre nas veias de Elba Ramalho, paraibana de Conceição do Piancó e criada na cidade mais cosmopolita do interior nordestino, Campina Grande. A mocinha chegou, enturmou-se e foi parar nos corais falados de Cecília Meireles e Manuel Bandeira. Até São Paulo, foi um salto. No desvario da Pauliceia, conheceu Luiz Marinho e participou, com ele e Tânia Alves, de um dos movimentos de teatro underground mais marcantes da história - no começo dos anos 70, estrelou Viva o Cordão Encarnado. Depois fez a Ópera do Malandro e ficou amiga de Chico Buarque. Foi quando a corifeia virou cantriz.

Geraldo Azevedo e Alceu Valença

É isso aí: cantora e atriz. Agora, uma pausa para refrescar o recreio. No começo dos anos 70, este escriba imodesto estava em João Pessoa e resolveu comparecer a um espetáculo estrelado por Elba Ramalho e Tadeu Matias no Teatro Santa Rosa. Tadeu substituía Geraldo Azevedo, à época marido e parceiro da menina do Vale do Piancó, no show Baião de Dois. Fui, vi, detestei e sapequei: 'Elba Ramalho jamais será uma estrela'. Este foi o título de meu comentário publicado no jornal A União, inspirado na antipatia que me causara a excelente atriz virar uma mera imitadora de Gal Costa. Não tive humildade nem paciência para perceber como Elba se tornaria uma estrela justamente por levar à classe média do Sudeste a tradição antes circunscrita aos forrós da periferia e defendida com competência pela campinense Marinês. Mas tive a pachorra de me confessar um mau profeta ao assisti-la brilhar como poucas no céu da canção.

Fagner
Como Elba Ramalho, Raimundo Fagner nasceu muito perto de onde nasci (eu no sertão seco de Uiraúna, Paraíba, ele às margens do açude de Orós, no Ceará). Do sertão, migrou para Fortaleza e de lá para o universo batizado de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde virou ídolo cult, daqueles compositores mais lidos que ouvidos, ao lançar 'Mucuripe', parceria com Belchior, pelo Pasquim, que tinha editora e selo. A canção seria gravada por Elis Regina e Roberto Carlos, e serviu de plataforma para lançar o astro de Orós num LP magistral, Manera Frufru Manera (1973). O disco contém regravações antológicas do clássico nordestino 'O Último Pau de Arara' e do totem pop 'Nasci Para Chorar (Born To Cry)'. Mas Fagner ficou conhecido mesmo por um plágio: uma fã lhe havia dado um poema que ele musicou: era Canteiros, de Cecília Meireles, e ele não sabia. Gravada a canção, os herdeiros da poeta entraram na Justiça e o disco se tornou uma raridade, até que as partes entrassem em acordo.
Fagner é um compositor que gosta de poesia erudita (é parceiro de Ferreira Gullar, Florbela Espanca, Francisco Carvalho) e popular (é o maior responsável por seu conterrâneo Patativa do Assaré ter virado moda urbana), mas sua maior importância na MPB é como intérprete. Ele é um almuadem, aqueles pregoeiros muçulmanos que cantam orações, que berra aboios. E traduz como ninguém um sentimento sertanejo por excelência, a urgência.
Ednardo

No  rastro de suas pegadas, no programa Mixturação, da TV Record, surgiram artistas de primeira grandeza, como Ney Matogrosso (Secos & Molhados), Simone, Raul Seixas, Pekim e o Pessoal do Ceará. Este bando, composto de Rodger Rogério, Teti e Ednardo, lançou Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem, em 1973, mas logo se desfez. Ednardo faz sucesso até hoje com 'Pavão Misterioso', tema da novela global Saramandaia, escrita por Dias Gomes.

O sucesso de Fagner levou sua gravadora a apostar em seu talento de produtor. O cearense sabia que aquela patota estava mudando o rock ao injetar no gênero doses maciças de poesia sertaneja. E quem fez isso com mais talento, sucesso e precisão foi José Ramalho Neto. Na fazenda do avô, Zé ouvira violeiros pelejarem; e, em grupos de rock de João Pessoa, como Os Quatro Loucos, fizera cover dos Beatles e Stones. Após gravar Paêbiru: o Caminho do Sol, com Lula Côrtes, e de acompanhar Alceu Valença num festival da Globo (em 'Vou Danado pra Catende'), Zé teve gravada sua obra-prima 'Avohai', primeiro por Vanusa e depois por ele mesmo no LP de estreia em que era acompanhado por Bezerra da Silva no zabumba e Elba no backing vocal.

Zé Ramalho, o Chuck Berry de Brejo do Cruz, é um bicho bruto, um poeta intuitivo, puro, natural. Já Belchior, cearense de Sobral lançado em 1974 com 'A Palo Seco', conhece poesia erudita como poucos. Mas essa erudição toda empalidece se comparada com o fato de ter ele escrito dois ícones do cancioneiro brasileiro: 'Como Nossos Pais' e 'Velha Roupa Colorida', lançadas por Elis quando o autor era apenas um retirante."



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