Em 1970 o genial músico Miles Davis mudaria o panorama do jazz ao lançar o disco Bitches Brew, que trazia uma proposta inovadora que a partir dali se tornaria uma nova tendência musical: o jazz-rock ou fusion. Tinta anos depois esse histórico lançamento seria lembrado pelo jornalista Jorge Albuquerque no jornal musical International Magazine nº 69. Abaixo o texto:
"Uma obra prima. Poucos mas pouquíssimos discos podem ser chamados de obra prima. O que não significa que sejam uma unanimidade. É interessante que a maioria não o são. Bitches Brew de Miles Davis é o melhor exemplo. Bem provável que seja o disco mais achincalhado, xingado, desmoralizado, humilhado e reduzido a pó pela crítica e por grande parte do público de jazz. Ontem sim, em 69, não hoje, vésperas de um milênio musical que deve, em muito, à genialidade de Miles e a discos como Bitches Brew. Mas imaginem a época. Revoluções políticas e sociais, amor livre, ditaduras, corrida espacial, Guerra Fria, Vietnã, cabelos compridos, pílula, música, muita música. Quem escutava jazz, os críticos de jazz, na época eram na maioria homens maduros e 'caretas'. O jazz corria sério risco de ficar para trás: perder o bonde do seu tempo. Sim, porque a música mais influente do século XX foi o jazz. É no mínimo colocar a mão no vespeiro dizer que foi, num casamento de mútuo consentimento, do jazz com o blues, que nasceu o rock. Deixando isso pra lá o que importa é que Miles queria renovar o gênero, reaproximá-lo do jovem e fazer do jazz novamente um instrumento de transformação. Conseguiu. E o público, jovem e roqueiro principalmente, fez o disco vender mais de 400 mil cópias em um ano e tornar-se o disco de jazz mais vendido de todos os tempos. E daí?
Bitches Brew, que acaba de completar trinta anos, mereceu da Sony Music o merecido resgate: o relançamento do álbum duplo original em um CD duplo com um livreto e uma faixa bônus (irretocável na versão nacional e já em todas as lojas) e numa luxuosa caixa importada de 4 CDs com absolutamente tudo o que foi gravado durante as sessões entre agosto de 69 e janeiro de 70. The Complete Bitches Brew Sessions. Remasterizado em equipamentos de última geração, resgata o eficiente trabalho de produção do legendário Teo Macero, obedecendo as estritas ordens do comandante Miles, à frente de feras geniais como os tecladistas Chick Corea e Joe Zawinul, o sax soprano de Wayne Shorter, os bateristas Jack DeJohnette, Billy Cobhan e Lenny White, o baixista Dave Holland e o guitarrista (praticamente descoberto por Davis e que de tão formidável ganhou uma música com seu nome no álbum) John McLaughlin. O nosso brasileiro Airto Moreira também está lá, tocando cuíca e percussão em algumas faixas.
E daí? Somente esse cast deveria avisar, antes mesmo do lançamento, que o trompetista estava armando alguma. Todos eram músicos respeitadíssimos e tradicionais de jazz. Mas jovens! Incrivelmente jovens e ambiciosos. Todos. Sob a batuta de Miles viraram notroglicerina pura. Eles entraram no estúdio um dia depois que Jimi Hendrix havia entrado para a história, numa manhã de segunda-feira em Woodstock. Correu o boato que Hendrix inclusive havia sido convidado por Miles, deixando acertada uma parceria no futuro. Restou a imaginação. De qualquer forma uma revolução foi gravada. Davis decidiu unir jazz e rock de forma inédita: ambos em estado puro, para uma lapidação inédita, vigorosa, sombria, reluzente, brutal. Essa 'fusão' resultou mais tarde em todo um movimento musical (o fusion), muitas vezes irregular. Mas uma coisa é certa: a música como nós a conhecemos, hoje, deve muito a esse disco. O curso da música contemporânea foi radicalmente transgredido, mudado. Dramático? Não, a mais pura verdade.
A remasterização revela nuances e mesmo frases explícitas de formas mais claras, brilhantes, o talento de cada músico em seu instrumento está revelado e a energia das sessões estão praticamente intactas. Como na maioria das faixas Miles não se contentou em utilizar apenas um único instrumentista, separando eles por canais (por exemplo, em 'Miles Run the Voodoo Down' Corea, Holland e DeJohnette estão no canal direito, enquanto que Zawinul, Havey Brooks e Don Alias estão no esquerdo): utilizou a 'liberdade' e a criação de cada um em proveito de sua própria inspiração, mas soube ouvir Zawinul (que assina 'Pharoah Dance'), Shorter (compositor de 'Sanctuary' e do bônus 'Feio') e cada opinião sobre os arranjos; e finalmente se lançou como um conquistador, um desbravador, em cada nota, em cada tentativa de achar uma harmonia, rompeu os limites dos instrumentos, tomou posse de escalas inteiras, ousou e abusou. E irritou os puristas.
Mas quem eram (ou são) eles para levantar dúvidas d'um Miles Davis aos 43 anos reescrevendo a música moderna, testamentando o jazz, evoluindo a raça. Apesar de satisfeito com o disco, ter engordado sua conta bancária e conquistado toda uma nova audiência, o nariz torcido de alguns dos seus ídolos, parte dos músicos tradicionais e crítica especializada, teve um efeito arrasador sobre seu estado emocional. Duvidando dos próprios caminhos, enterrou-se nas drogas e somente mais tarde se restabeleceu - nunca mais olhando para trás e seguindo o novo caminho aberto por ele. Miles Davis renasceu em Bitches Brew e junto com ele todo um século."
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