Palavras Domesticadas

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sábado, 18 de julho de 2015

O Som Elétrico de Miles Davis - Revista Música do Planeta Terra (1975) - 1ª Parte

Em 1975 a revista alternativa musical Música do Planeta Terra trazia uma ótima matéria sobre a fase fusion de Miles Davis, em texto escrito por Júlio Barroso. Abaixo a transcrição da matéria:
"Foi na velha cidade de Alton, Illinois, onde no dia 25 de maio de 1926 nasceu Miles Davis.
Seu pai era dentista, e a família Davis gozava de certa tranquilidade financeira, coisa rara para os negros em geral.
Com 10 anos ele começou a aprender trumpete com um professor de música que tratava os dentes com seu pai. Foi esse homem que aconselhou a Miles o toque sem vibrato, uma das características principais de seu estilo no período Bop.
Aos 16 anos o saxofonista Sonny Stitt ao passar pela cidade de Alton, ouviu-o tocar e quis levá-lo para Nova York, pois achou a sua sonoridade muito próxima do estilo de Charlie Parker. Mas a mãe de Miles disse não, ele tinha que completar seus estudos, fazer curso superior.
Mais tarde a banda de Dizzy Gillespie e Parker tocou na cidade e Miles teve a oportunidade de tocar para seus mestres. Um contratempo com o segundo trumpete da banda foi a chance de Miles, foi convidado para substituí-lo e embarcou para Nova York, com a condição dada pela mãe de que continuasse seus estudos.
Ele já havia decidido seu caminho, seria músico; entrando para a bem conceituada Juliard School of Music. Em trajes finos ele tocava ao lado de Parker e de 1945 a 1948, junto com Bird fez parte da grande virada do jazz que foi a revolta angustiada do Bebop.
Em 1958, conheceu o arranjador Gil Evans, e deste encontro nasceu a Capitol Orchestra, o primeiro passo na introspecção que foi chamada cool jazz. O cool foi o esforço do jazz na tentativa de desvencilhar-se da falta de técnica que o rebaixava perante a música europeia de concerto. É o impulso físico regulado pelo racional, o discurso do solista de cool jazz é algo mental, controlando a emoção. Miles Davis, um dos pioneiros da maneira cool, é porém, também um dos maiores improvisadores da música negra. Em qualquer contexto.
De 1957 a 1958, ainda com Evans ele iria experimentar as grandes orquestras, criando clássicos como Sketches of Spain. O ano de 1958 vê a face do jazz novamente alterada, renovada pelo sexteto de Miles, com John Coltrane e Bill Evans, um religioso, emocional, o outro dono de um perfeccionismo quase científico. Para muitos músicos da vanguarda e críticos este foi o último conjunto do jazz, pois a partir daí Coltrane começa a radicalizar cada vez mais a sua sonoridade, o que o levaria a se unir com a vanguarda musical de Nova York e levar avante a revolução que decodificou toda a linguagem, o free jazz.
Miles Davis contudo não aceitou completamente a atonalidade do free. Reformando seu sexteto, sempre com músicos jovens, levando às últimas consequências o jazz tonal. Em 1969 ele uniria definitivamente a eletrônica à sua música e ao jazz. Nesta época ele gravou o LP 'In a Silent Way', onde demonstra a primeira transformação num sentido da ampliação completa de seus horizontes utilizando elementos do blues rock inglês, via John McLaughlin além do pioneirismo na múltipla utilização de teclados eletrônicos. Em seguida ele cria a direção do novo jazz com seu disco 'Bitches Brew', a ampliação da proposta elétrica e mais, a modificação de todo sentido do jazz moderno.
A partir daí começa a reestruturação das linguagens vanguardistas que já haviam feito do free jazz uma instituição e abraçado a atonalidade com a mesma cegueira com que os antecessores de Coltrane haviam abraçado a formalidade.
Miles é acusado de não participar da luta negra, pois pratica uma música rock, e portanto, branca, capitalista.
As declarações de Miles são ainda mais instigantes, quando ele diz que falta soul e vanguarda, e que Eric Dolphy é um chato.
Heresias elétricas, correndo todo o vodu para baixo, Bitches Brew é o jazz eletrocutado, Miles aderindo à estética do grito, assumindo todas as linguagens, restando do jazz praticamente apenas o  improviso. Nota-se em sua música a presença do fraseado de Don Cherry, do lirismo free de Bill Dixon. Mas é ele que vai tudo decodificar, derrubar as barreiras, indicar os novos caminhos. Em 'At Fillmore', ele projeta mais além o elemento free dentro do mundo eletrônico, a justaposição de elementos musicais divergentes, a percussão de Airto corroendo as melodias como microtons parasitários, tensão-relax é a sua tônica principal. Os turbilhões de elementos projetados pelo duo Corea-Zawinul em Bitches Brew, são ampliados pela pesquisa de Keith Jarreth, e o sax soprano vital, fraudulento de Steve Grossman, exortando um free rock total.
Quase todos os ídolos de Miles são pugilistas, e foi para um pugilista que ele dedicou 'Tribute to Jack Johnson', o grande lutador e playboy que conquistou Paris. Neste disco ele homenageia também a uma de suas maiores admirações no campo da  música, Jimi Hendrix, em um trecho onde John McLaughlin evoca toda uma frase de Jimi, pontilhada pelo trumpete  de Miles (contam inclusive que Miles foi chamado para reformular a banda de Hendrix, e trabalhar em conjunto com ele). Esta citação em 'Tribute' é a homenagem que ele presta ao grande pioneiro no uso dos novos acessórios eletrônicos que inspirou Miles em muitos rumos elétricos."

(continua)

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