Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Aldir Blanc - Entrevista Jornal International Magazine (2006) - 1ª Parte

Em sua edição de março de 2006, o jornal musical International Magazine trazia uma entrevista com Aldir Blanc, que tinha lançado há pouco tempo seu disco "Vida Noturna". A entrevista, feita pelo jornalista  Felipe Tadeu, em tem por título "O barbudo que deu certo":
"-Você lançou há pouco o álbum 'Vida Noturna', mas até agora nada de show para badalar o disco. O Aldir cantor só existe no estúdio e no âmbito mais íntimo?
- O intérprete é jogo duro mesmo, porque esse disco é resultado de alguns pedidos, do meu parceiro e produtor Moacyr Luz, da minha mulher Mari, das minhas filhas e de vários amigos, para que eu não deixasse se perder algumas músicas. As composições que eu faço sozinho não têm partitura, não tem registro algum, nem fita nem nada. Se alguém não gravou numa noite dessas aí, dançou. E agora, que eu vou completar 60 anos, quando o meu joelho pifa e os amigos em volta morrem, eu achei que seria interessante gravar várias dessas músicas que eu realmente gosto muito, como uma feita com Maurício Tapajós. Dela eu não tinha nada a não ser a memória, uma música sobre Paquetá. Eu cheguei no estúdio, me acertei com o Cristóvão (Bastos) e o João Lyra e foi. Eu cheguei a fazer umas matérias sobre o Vida Noturna, mas depois eu fiquei doente, tive uma labirintite brutal, dessas que se você quer ir ao banheiro, vai rastejando pra não cair, e o esquema de divulgação do disco, que implicava não em shows, mas em apresentações em livrarias e pequenos bares, ficou suspenso até que o treco ceda um pouco.
- Você tem coragem de encarar um show inteiro cantando?
-Tenho. Só não faço um segundo dia, porque aí eu tô de ressaca e totalmente diferente. Eu tomo sempre o cuidado de marcar um show só em cada lugar, pra não precisar voltar (risos)
- É interessante que o 'Vida Noturna' tenha saído por uma gravadora de São Paulo. Como é que surgiu a aproximação com a Lua Discos?
- Essa gravadora é muito interessante porque ela está próxima de alguns lugares em São Paulo, como o Esquina Carioca e suas filiais, que são bares que tratam da cultura carioca. São todos bares invariavelmente muito legais. A Lua tem uma afinidade com eles e o produtor do selo, o Zé Luiz (Soares) frequenta, por esses motivos, a casa do Moacyr Luz, que por coincidência mora aqui no meu prédio. O Zé me ouviu cantando numa hora em que eu estava tranquilo - eu sou normalmente um sujeito quieto e tenso -, lá pelas três da manhã, eu já tinha tomado todas, e aí acabei topando a ideia do disco. O que tá por trás disso na verdade, pra variar, são os motivos financeiros. Eu precisava de dinheiro e fui gravar, entendeu? Mas eu tenho alguns orgulhos desse disco: primeiro porque eu achei que eu nem ia fazê-lo e fui. Depois porque a gente gravou tudo em três sessões, direto! Eu matei todas as músicas de primeira, com os músicos dentro do estúdio fazendo o som ao mesmo tempo, o que não é comum. Foram três dias para mim inesquecíveis.
- Aldir Blanc não parece mesmo bicho de estúdio.
- É, não é a minha praia, não sou sujeito de ficar preso lá, sem alteração. Ainda bem que eu fui com o mordomo, né, o Jack (Daniels, o uísque). Ele me ajudou um bocado (risos).
- Um brinde a ele, que também se faz presente aqui nesta entrevista.
- É, hoje ele está de mordomo e de segurança. Mas o Zé Luiz, ele tem aquela visão típica do produtor, de um cara muito inteligente que observa onde as pessoas estão se confraternizando. Ele fica vendo a reunião e pensando se é possível ou não fazer um disco. Ele tinha a vantagem indiscutível de lançar um álbum com um cara que tem o nome pronto. Nego pode contestar, até arrasar com o disco, mas eu tenho um nome na praça há 30 anos, o que facilita o projeto cultural do Zé.
- Chegou a passar pela tua cabeça de gravar no 'Vida Noturna' composições assinadas por outros compositores?
- No projeto inicial havia música do Baden, de Paulo César Pinheiro, mas a gente fez uma segunda reunião e disse, isso vai caracterizar de forma ainda mais estreita uma coisa perigosa que é 'mas você está se lançando como cantor aos 59 anos?' Foi isso que nos levou a enxugar um pouco e ter só música minha. Se houvesse uma pretensão maior e uma vontade também minha de fazer shows, talvez essas músicas tivessem sido incluídas, particularmente (cantarolando) 'novamente juntos eu e o violão', letra do Paulinho Pinheiro, uma música que é melhor do que todos os anti-depressivos que eu conheci, e estou falando inclusive como ex-médico. Chegamos a botar por escrito quais seriam as tais músicas, mas daria uma outra conotação ao trabalho.
- Você foi ser letrista por inspiração dos versos de uma composição de Paulinho da Viola, Arvoredo. Verdade?
- Na verdade eu vivi duas situações decisivas. Eu era baterista de um teatro de estudantes, o chamado Teatro Azul, na rua Mariz e Barros, aqui na Tijuca, de um grupo chamado GB-4 na década de 60. O Paulinho da Viola foi lá e fez um show, onde o  Cartola também estava. Quando ouvi o verso do Paulinho eu fiquei muito impressionado, o jeito dele levar (cantarolando) 'Já não tenho folhas verdes que possa te oferecer'. Isso foi um tapa, rapaz! Eu era um que conhecia o repertório todo do Silvio Caldas, do Orestes Barbosa, eu cantava todas as serestas dos discos do hoje pouco lembrado Onésimo Gomes, era muito ligado nisso e fui morar no Estácio, numa época de bloco de rua, com ensaio de bloco, começo da década de 50. O nome de Noel Rosa voltava de uma forma alucinante, eu vindo da Vila onde era vizinho por apenas uma ou duas casas do Benedito Lacerda, parceiro ilustre do Pinxinguinha em muitos clássicos. Isso tudo estava meio entranhado mesmo em mim, de me dedicar à música. Eu voltava encharcado de formol de uma segunda época injusta em Medicina, que tinha um professor cagando regra, querendo se exibir e reprovando todo mundo, quando eu cheguei um dia em casa e o Paulinho Pinheiro tava no festival com Lapinha. E eu disse 'agora ferrou, é isso que eu quero ser'. Então são dois Paulinhos fundamentais na minha vida. Depois que eu tô no segundo ano médico, eu penso obsessivamente em largar o curso, e só não largo no quinto ano porque um amigo me chama para ajudar num hospital psiquiátrico em condições lamentáveis, e eu me apaixono mais pelo trabalho social do que pelo trabalho médico propriamente dito. Com uma enfermaria para 40 pessoas onde estavam 120 sujeitos seminus, sem remédios, e a gente debelou a encrenca. Isso me marcou profundamente, mas logo depois com três anos de consultório, eu digo 'cara, eu vou acabar me suicidando'. Ou o que seria pior, 'eu vou errar aqui e prejudicar alguém'. Eu pensava em fazer música, na época eu queria muito tocar percussão, mas aprendi a duras penas que os percussionistas eram muito melhores do que eu.
- Sinal Fechado, de Paulinho da Viola e Amigo É Pra Essas Coisas, tua e de Silvio da Silva Jr. são canções com estrutura parecida, ambas em forma de diálogo entre duas pessoas. Quem surgiu primeiro?
- O que eu posso dizer sobre isso é que Amigo É Pra Essas Coisas foi feito com meu primeiro parceiro, amigo da pré-adolescência.
- Ele também era do Mau (Movimento Artístico Universitário, grupo cultural ao qual Blanc, Gonzaguinha, Ivan Lins e outros pertenciam e que promovia encontros na Tijuca, no começo da década de 70)?
- Sim, mas eu conheço o Silvio desde os meus 13 anos em Paquetá.
-Teu avô tinha casa em Paquetá, não é isso?
- É, e o dele também. A gente se aproximou um do outro muito lá em Paquetá, naquelas serestas e nós aprendendo a paquerar as meninas e tal. O Amigo É Pra Essas Coisas tem uma história interessante porque ela é muito tocada em Paquetá durante três, quatro anos antes dela entrar no festival universitário. Eu não tenho ideia clara da época, mas me lembro bem como ela foi feita. Era uma época em que nossas avós cortavam uns papeis de embrulho rosa ou verde, sempre do mesmo padrão, e faziam uns picotes nas pontas para decorar prateleirinhas. Eu fico tão alucinado pela música, que eu puxo um papel desses e começo a escrever ali, a lápis, a letra. Na verdade, o brilhante dessa invenção nossa veio do Silvinho. Toda a primeira voz é a do bordão, com as primas respondendo. Daí eu ter percebido que havia um diálogo entre primas e bordões. Depois, para adaptar ao MPB-4 (grupo que defendeu a música no festival), o Ruy, o Magro, o Aquiles e o Miltinho tiveram um trabalho do cão para que aquilo fosse dividido em quatro vozes. E não funcionou em momento nenhum, em ensaio nenhum, até a hora da apresentação ao vivo. Pela primeira vez eles acertaram e foi um sucesso desgraçado.
-Uma curiosidade esquisita: você já tinha assistido ao filme Encouraçado Potenkin, de Sergei Eisenstein, antes de escrever a letra de Mestre-Sala dos Mares (parceria com João Bosco)?
- Não, na época não. O Mestre-Sala dos Mares é uma ideia que vem pra mim e pro João através de dois amigos, de um rapaz que estudava comigo anti-psiquiatria chamado Pedro Lourenço, que não era psiquiatra nem estudante de medicina, mas tinha paixão pelo assunto. Pedro tinha uma obsessão pelo João Cândido (personagem principal da chamada revolta da chibata) e fazia pesquisa a respeito. O outro amigo é Cláudio Tolomei, que é parceiro meu e de João em duas ou três músicas, já falecido, que era cineasta e sonhava fazer um curta sobre isso e eu e João resolvemos fazer então a música, com estrutura de samba-enredo. Era pra Cláudio Tolomei ser parceiro da música, mas ele se recusou a assinar a produção por motivos particulares que eu sinceramente desconheço.
- Perdeu a chance de entrar pra história...
- O Cláudio não chegou a escrever a letra, mas sugere coisas. Aliás, a letra depois passa por muitas modificações porque ela fica presa na censura uma, duas, três vezes. Até que um rapaz da RCA Victor ensina o truque pra gente: muda só o título, que passa direto pelo arquivo deles e o corpo da letra permanece mais ou menos intocado."
(continua)

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário