'"Quando nós, do grupo Doces Bárbaros, íamos para o Galeão, o automóvel de Elizeth Cardoso emparelhou com o nosso e ela nos sorriu de lá, acenando. Nós saímos para a excursão abençoados. Não é sempre que acontece a gente poder harmonizar tantas energias numa luz clara. E não é fácil. O que Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e eu estamos conseguindo agora é isso. Saímos por aí sem intenção de criar ou resolver problemas ou aceitar provocações. Bob Marley: 'don't deal with dark things' (não transe com coisas escuras), João Donato e Jorge Ben. Gente de fé reconquistada, mostramos com simplicidade a música e a poesia da vida, do que vive, do que está vivendo - os Orixás, as pessoas boas, bonitas e fortes, os peixes e a esperança. Dentro das nossas possibilidades imediatas, o nosso trabalho é bom. É o que nos basta. Ao resto, o resto. Por exemplo, a cidade de Florianópolis (nome que deram à cidade de Desterro) não deveria constar da lista das cidades visitadas porque a produção não considerava uma boa praça (180 mil habitantes). Por insistência minha e de Gil, ela entrou. Gal não queria e Bethânia teve quase um pressentimento que nossa ida lá não seria boa. Quando os policiais interromperam nosso sono e nossa alegria, eu disse a Gal: ' Parece que ter vindo a Florianópolis foi um gesto livre demais e isso subiu à cabeça de delegado'. De fato, conhecidos meus de lá me diziam: 'Eu não acreditava que vocês viessem até que vi vocês.' Um chegou a me perguntar: 'Por que vocês incluíram Florianópolis no roteiro?' - 'Por amor', eu respondi. A polícia entrou no apartamento de Gal Costa, Maria Bethânia., Lea Millon, Eunice Oliveira, Maria Pia de Araújo, Guilherme Araújo, Chiquinho Azevedo, Djalma Correa, Arnaldo Brandão, Perinho Santana, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tuzé de Abreu, Mauro Senise, Tomás Improta, Daniel e, ainda, nos dos técnicos de som, luz e palco, alegando ter recebido uma denúncia de Curitiba. Contra quem? Contra todos esses nomes? Eles conseguiram levar Gil e Chiquinho. Nós não saímos para discutir leis nem moral. Nem a religião, nem a política, nem a estética. Saímos para não discutir e não discutiremos. Mas saímos com uma imensa carga de luz de vida, com amor no coração. É muito difícil alguém chegar a poder dizer isto, mas eu digo que nós somos um grupo de gente que saiu por aí trabalhando pelo Bem. E quem quer que - na polícia, na imprensa, no inferno - queira nos atacar ou nos atrapalhar, estará trabalhando para o Mal."
No Rio, enquanto Gil ainda estava em Florianópolis (na prisão e depois no hospital), Maria Bethânia estava indignada. Gal Costa atônita e Caetano assustado. Gil sereno e tranquilo, em pleno controle, depondo, construindo sua liberdade, compondo. No hospital ele fez 'Chiquinho Azevedo' (*), uma reportagem musical contando uma história verídica que se passou em Recife durante a excursão: Chiquinho salvou um garoto e o médico não quis atender o afogado porque eles não tinham dinheiro para pagar. No fim, o garoto sobrevive. Como Gil resistiu intacto as violências de Florianópolis. Lá, ele falou, antes, durante e depois de seu julgamento:
-Eu achei que não era hora de fugir. Achei que era hora que alguém assumisse isso. Que alguém tivesse sossego, tranquilidade, correção bastante para assumir, para dizer às pessoas o que é que acontece. O que é verdade, como são as coisas."
Texto retirado do livro "Música Humana Música, de Nelson Motta (1980)
(*) A música "Chiquinho Azevedo" ficaria inédita até 1997, quando Gil a gravou no álbum "Quanta".
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