Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 29 de julho de 2015

Anos 70 - Ame-os ou Deixe-os - Revista HV (1986) - 1ª parte

Em 1986, a revista cultural alternativa HV (H de humor, V de Verdade) trazia uma matéria sobre os anos 70, assinada pelo jornalista Arthur Veríssimo. Abaixo, a transcrição:
"Em memória ao verdadeiro e único Caito Camargo (a eminência parda do rock paulista). 'Os gritos de gooolll da corrente pra frente abafavam os gritos de dor dos torturados nas masmorras do sistema.'
Fazermos um gráfico dos fatos e acontecimentos do universo pop entre 1º de janeiro de 70 e 31 de dezembro de 79 é uma tarefa um tanto delicada como nostálgica. Sem nenhuma preocupação de sequência cronológica, ponho mãos à obra.
Aqui no Brasil, com  a vitória no México e a conquista da Copa do Mundo de 70, todas as gerações subsequentes têm bem guardada em sua memória a escalação oficial da seleção. Mas alguém se recorda de James Brown pondo em parafuso o público no Teatro Municipal em 73, Carlos Santana no Palmeiras também em 73, Alice Cooper no Anhembi em 74, Miles Davis em antológico show no mesmo Municipal de São Paulo em 71? Pois é, desses acontecimentos alguém se lembra???????
Dando um voo de rastreamento por sobre a década passada, não nos esqueçamos da ebulição política dos 60, com  a ressaca de maio de 68, a experiência negativista do Vietnã pela juventude americana, a eterna ditadura no Brasil. As pessoas se voltaram para preocupações puramente pessoais, grande parte das elites convenceu-se de que o mais importante era o autoconhecimento psíquico, pesquisas sobre a sabedoria oriental, experiências dos ocidentais com novas (milenares) técnicas de terapia, culinária, meditação, gestalt, ioga, zen-budismo, tai-chi, dança-clássica-jazz-ventre, mestres espirituais, rolfing, acumpuntura, Instituto Esalém, lutas marciais e muita droga.
O objetivo era conhecer a si mesmo, sendo a outra extremidade a famigerada ideia fixa da egotrip. Nesse pequeno esboço percebe-se a importância dos anos 70, durante o qual o rock se expandiu por quase toda música à procura de novos moldes e fusões, do jazz com a música sinfônica, do rock com o psicodelismo, do pop com a tecnologia junto às produções faraônicas - era o momento de rock progressivo.
David Gilmour (Pink Floyd)
Não se esquecendo de que a força (vinha de fora) mais influente desta década se refletindo por inteiro nos 80 são os Velvet Underground, sem sombra de dúvida a banda mais importante da história do rock, junto com Marc Bolan, Bob Dylan, Beatles, Iggy Pop, Doors, David Bowie, Led Zeppelin (banda fundamental e marca dos 70), Stones, Roxy Music, Pink Floyd, Elvis Presley, New York Dolls, coletivamente responsáveis pela revolução que sofreu a música popular, liricamente. Mas isso já é outra história.
Vejamos o Brasil e suas manifestações decorrentes durante este efervescente período. Expressões e gírias re (inventadas) nos 60 se tornaram mantras e cantochões nos 70 e 80; e aí, bicho, super, massa, boko-moko, loki, morô, só, é uma transa mais de cabeça, joia-paca, fissura, jererê, bicho-grilo, jazzco, pedra, podescrer, mui loco, e muitas tantas arquivadas na memória coletiva e utilizadas no dia-a-dia dos delírios e relações humanas. Quem não se recorda do black-market das primeiras camisetas Hang-ten e Lightming Bolt e dos tênis All-star cano-longo, nas peregrinações pelos corredores da mitológica galeria Pajé, onde as autênticas (após minunciosa perícia) Levi's 501 e Cone Japoneza eram disputadas a porradas, os casacos militares e macacões puídos encontráveis nos primeiros 'Lixões' que são equivalentes aos 'brechós' que pipocam atualmente pela cidade? Estas peças e outras do vestuário (medalhões, cinturões, bocas-de-sino, calças e camisas bordadas de cogumelos, símbolos religiosos, veludo berrante, malhas de pelo de lhama, bolsa boliviana e, naturalmente, o nojento gorrinho encebado) eram o denominador comum de identificação entre elementos da mesma tribo.
Eu pessoalmente adorava o meu autêntico mocassim apache e minhas calças bordadas de cogumelos e recheadas de miçangas. O cabelo era ao estilo 'ninho de rato', visualmente um trash-glitter contemporâneo. O local de encontro entre os 'meus' eram os pastos de cogs, em Parelheiros e Marsilac (zona sul de São Paulo) e o circuito onde as bandas (tupiniquins) se apresentavam: teatros, Igreja São Pedro, Bandeirantes, Tenda do Calvário, Banana Progressiva (GV), não podendo me esquecer também daquelas grandes noitadas na extinta Be Bop a Lula, onde a fauna mais variada coexistia com a cult band Made in Brazyl em noites do balacobaco e, também, as tardes de domingo, em concertos variados na lagoa do Morumbi... you remember?
Retornando à música, as gravadoras habilmente, com seus espertos executivos, cooptaram a energia e rebeldia (como sempre) da contracultura, adocicando e desenvolvendo-as como inofensivos e lucrativos  produtos de consumo. Muitos destes discos, que não precisavam mais ficar restritos e confinados a audições nas garagens em precárias vitrolas, foram aceitos e executados na própria sala de visita da família."

(continua)

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