Em 2001 João Gilberto completou 70 anos. Em sua edição de 10 de junho daquele ano o jornal O Globo publicou um caderno especial em homenagem a esse grande mestre da MPB. O volume traz textos, informações e depoimentos sobre João, dentre eles esse texto de Galvão dos Novos Baianos, seu amigo e conterrâneo. O texto é intitulado "O que há de melhor em música":
"Aqui na Terra minha principal admiração é pelo talento e pela poesia viva da pessoa em si deste artista maior que tive a boa sorte de conhecer de perto por termos nascido em Juazeiro, na Bahia, e bebermos das doces águas do São Francisco. São 42 anos de uma amizade a qual venho regando e sonho eternizá-la. E o que está em jogo é a arte produzida por esse astro que vem iluminando o canto e a instrumentação mundial e levando com sua bossa o nosso samba aos espaços mais altos onde a música popular possa pousar.
Daí a nossa sólida amizade não pesar nada diante do outro prato da balança simbolizado pelo talento artístico do amigo artista número um que vem, ao longo do tempo, contando na mais rica forma a poesia da música aos que sensibilidade aguçada têm para saborear sua sofisticada, simples e elevada arte musical. Ela é inteirada nos fundamentos da musicalidade, domínio rítmico, instrumentação harmônica, técnica de respiração e criatividade de mãos dadas com a improvisação. Tudo isso somado a uma interpretação onde olho, boca e sentimento mostram o grande ator que João Gilberto é e que todo cantor deve prestar o máximo de atenção para também sê-lo.
Os laços dessa amizade sincera e profunda, os caminhos cruzados no momento contemporâneo da história do planeta e o mistério de sermos conterrâneos naturalmente somam para a minha observação. Mas, tivesse João nascido onde quer que fosse e trouxesse o canto e o acompanhamento que faz com o violão, a concepção artística e o talento que tem, eu o veria como o artista primeiro, sem tirar uma vírgula do que vejo hoje.
Onde esse instrumento e canto vivos andam pelo mundo afora, mostram, com a bossa, o samba, o balanço, a ginga e um original alegre jogo de palavras contando as histórias de amor de um povo para outros povos que já estão no grau de apreciarem culturas. Há lugares aconchegantes em que o pássaro sambista não passa, cria raízes e os leva no coração, conservando-os para um retorno sempre. Para falar desses casos de amor entre o homem e terras, eu tento ser poesia, porque esta fala melhor.
Nem tudo é poesia, no entanto, daí dizerem às vezes que João Gilberto reclama. O que todo mundo vê mas ninguém quer enxergar é que João só clama por um retorno de som para se ouvir e poder dar o melhor de si.
Sem medo de derrapar ou pisar na casca de banana da vaidade, gosto de algo inteligente, assim como delicio-me com João em momentos de grande intuição, raciocínio rápido e de rara beleza. Como aconteceu em um show a que assisti no Teatro Castro Alves, em Salvador. Tudo corria bem ou melhor, e se quiserem se aprofundar e continuar nesta, andava em passos de passista, até religarem o ar-condicionado, que João chama de ar refrigerado. Talvez ele assim o faça referindo-se ao frio do refrigerado no ambiente. Ou porque o efeito que causa no som torne esse elemento um elemento famigerado. Naquela hora, ele disse: 'Outra vez ligaram o ar-refrigerado. Não sabem que desafina as cordas, vocais e do violão? Isso mata. A França já sabe disso. Cria um ambiente de contaminação. Mata um, mata outro e vai matando até ficar só ele... o ar refrigerado. Bonito! Que graça! Só ele. Eu não acho. Vocês acham? (A plateia quase toda em coro: 'Não-ão-ão'). Muitos anos atrás, quando eu fiz um show aqui mesmo nesse teatro, havia um motorzinho para ligar o ar-refrigerado que ficava bem embaixo de onde estou e fazia uma trepidação no piso (faz gestos encenando) que eram obrigados a desligá-lo durante a apresentação. Ai que saudade que tenho daquele motorzinho.'
Uma semana depois, morreu o ministro das Comunicações do governo Fernando Henrique, Sérgio Motta. Ele fora contaminado e foi anunciado pela imprensa tratar-se de infecção generalizada, provocada por contaminação vinda do ar-condicionado. Tais equívocos que ocorrem em relação às apresentações desse exigente artista são de exclusiva responsabilidade de uma camada da imprensa que não se atualizou ainda e insiste em buscar sensacionalismo barato.
Amigos meus que estudam João Gilberto dizem coisas que merecem ser citadas. O professor e artista gráfico Rogério Duarte disse: 'João se encontra em um ponto equidistante entre a polifonia e a harmonia. Nem se pode falar no termo acompanhamento, quando nos referimos à sua forma de cantar enquanto toca violão. Ou seja, a voz da garganta e outras vozes que saem da boca do violão compõem uma unidade indivisível, que abole a velha hierarquia quer separa o solo do acompanhamento. É essa inteireza nunca por outro atingida, que singulariza a obra ou a estética de João. Ali nada sobra. Ali nada falta. Nada pode ser dissecado, sequer a letra e a música. Tudo se funde numa tonalidade una, que por isso não poderia deixar de ser simples. Favor não confundir com simplório. Essa simplicidade de ser composta em partes ou aspectos parciais. Em vão passaríamos uma eternidade tentando esquadrinhar seus mistérios. Isso é João Gilberto. Qualquer tentativa de aproximação exagerada só resultaria em imitação.'
ilustração de Elifas Andreato |
Em conversa com o meu amigo Aderbal Duarte, violonista e professor da Universidade Católica da Música da Bahia e que estuda João Gilberto há 27 anos, pude colher outra descoberta. Aderbal descobriu que João Gilberto tem um volume de som para cada dedo e manuseia isso de forma fantástica. Segundo ele, 'as notas aguda e grave, por estarem nas extremidades dos acordes, normalmente são as que mais sobressaem. João, para tornar audível as notas intermediárias, que, por sinal, são tão importantes quanto as outras, acentua com o dedo indicador da mão direita e assim elas são ouvidas na mesma intensidade. Há determinadas situações de João Gilberto com o violão que é algo fora do comum. Na versão de 'Pra que Discutir com Madame' (de Janet de Almeida e Haroldo Barbosa, composta na década de 40), registrada no disco 'Live in Montreux', João faz 440 mudanças de acordes, além de citar uma frase de Tchaikovsky. Outra também é o polegar apoiado.'
Sobre isso, eu falei com Aderbal. Quando o conheci lá em Juazeiro, observei a grande diferença que há entre o modo comum de tocar e o de João. Não dá pra confundir. Sempre vi as pessoas descendo o braço com o polegar comandando a batida meio esticado e com os outros quatro dedos dobrados mas também batendo. Ao passo que João apareceu tocando nas cordas de cima, não batendo exatamente, mas tocando nas cordas como se quisesse pegá-las para fazer um carinho ou um cafuné. Sobre esse negócio de polegar apoiado, eu quis saber mais. E Aderbal explicou: 'É que as pessoas tocam com o polegar solto e, além de fazerem mais força, o som não sai denso. João trava o polegar na quinta corda e assim ele não leva o braço como se faz de forma comum, mas leva o peso do braço e traz o som sem estardalhaço. E de maneira enérgica.'
Enfim, a realidade existe independentemente de haver quem possa chamá-la de preciosismo. Sinto vontade de pronunciar-me sobre o tema unindo poesia e música.
Pintura, eu gosto e até procuro ver um quadro com o mesmo grau de sentimento que sinto ao ouvir uma música, porém não me atrevo a dizer que tal pintor é melhor que outro porque, nesse campo, tenho apenas o meu gosto e gosto todo mundo tem. É certo que melhor existe, mas enquanto não chegarmos todos a ver o mesmo melhor, eu e quem vem com sensibilidade dando o tempo todo de sua existência para o estudo da música estamos acima de apenas gostar, por isso não abdicamos da afirmativa de que gostamos do melhor , que em música é João Gilberto. "
Enfim, a realidade existe independentemente de haver quem possa chamá-la de preciosismo. Sinto vontade de pronunciar-me sobre o tema unindo poesia e música.
João Gilberto e o compositor Denis Brean |
Nenhum comentário:
Postar um comentário