Em 1983Alceu Valença vivia um grande sucesso. Seu álbum Cavalo de Pau, o mais bem sucedido de sua carreira, lançado no ano anterior, vendeu mais de 400 mil cópias. Inúmeros shows de Alceu e sua banda aconteciam Brasil afora, sempre com grande público. Em sua edição nº 3 (janeiro de 1983) a revista Pipoca Moderna nº 3 trazia um boa matéria com o compositor pernambucano, atestando seu grande sucesso na época. A matéria, assinada por Mauro Dias, tinha como título "Capitão Alceu chegou lá':
" 'Capitão, nós estamos com você' - faixa erguida por jovens entre 14 e 19 anos, apinhados no estádio principal de Curitiba. Não era o início de qualquer movimento político, apesar do capitão aludir, certamente, a Che Guevara. Os jovens erguendo a faixa não usam mais camisetas com retratos de Che e provavelmente não têm mais seus posters pregados na parede.
O capitão em pauta é outro, também barbudo, quase quarentão. Não usa a boina com estrelinha - símbolo, de reto, cooptado pelo Partido dos Trabalhadores -, mas um chapéu de abas largas e caídas. Não faz comício: canta. Chega ao palco montado numa burra - aquele cavalo de madeira usado na festa de reisado, no norte como no sul
A burra de madeira está, ainda na capa do último LP de Alceu Valença, o capitão. Cavalo de Pau é seu oitavo disco, se contarmos o que foi dividido com Geraldinho Azevedo, início de carreira para ambos, 1972 - chamando a atenção apenas da crítica e de pessoas muito ligadas em música, pouco mais do que isto. Na ocasião, megafone em punho, correu as ruas de Copacabana conclamando o público para o show que montava e não dava público(*).
Perseguindo o sucesso por caminhos menos convencionais - em 1979, largou tudo e foi tentar a sorte em Paris - Alceu conseguiu a façanha invejável de vender 400 mil cópias de Cavalo de Pau em apenas quatro meses - ou seja, 100 mil cópias por mês, mais de três mil por dia. Isto sem que a gravadora investisse em publicidade mais do que o costumeiro, sem que armasse esquemas especiais, especiais na televisão - houve um, dividido com Elba Ramalho, mas foi consequência do sucesso e não estratégia promocional - ou qualquer outro truque de marketing.
Ao contrário, o disco andou meio desacreditado, na ocasião do lançamento. Primeiro porque Alceu exigiu apenas quatro faixas de cada lado, que garantiria melhor rendimento sonoro e posterior melhor qualidade de reprodução. Aos olhos do comprador comum, entretanto, a providência poderia ser mal interpretada. Pagar por oito músicas o menor preço que pagaria por 10 ou 12 não é exatamente tentador.
Mas Alceu fechou a questão e a coisa saiu como ele queria. Segundo ponto de descrédito: a capa, nada didática, com duas 'frentes' e cortes laterais sugerindo a perspectiva de um caixote de madeira, desses usados para transporte de mercadorias (não falta o made in Brasil gravado a fogo numa das ripas). Sobre a madeira, numa das 'frentes', o próprio Alceu, meio príncipe medieval, montando a burra. Na outra, numa escultura de Antonio Peticov que tanto pode ser a cara do cavalo de pau, estilizada, quanto a cara de uma pessoa.
Para o lojista - e, portanto, para a gravadora -, não é bom um disco com duas capas. Qual delas deve ser exibida, exposta de modo a chamar o comprador? Uma confusão mercadológica dos diabos. Alceu Valença pensou nisto? Pensou, sim:
'A capa de um disco, véio, deve ser o mesmo espírito do disco, deve ser um objeto de arte, tanto quanto o disco precisa ser, de verdade, uma expressão artística, a expressão de uma cultura, de um universo cultural de uma expectativa cultural. Então, se você faz um disco pensando em expressar sua arte, não é coerente fazer uma capa que não tenha o mesmo espírito'.
E que espírito é este? No caso específico, uma brilhante miscelânea de citações, cobrindo o largo universo que vai de Jackson do Pandeiro aos Beatles (mesmo que o autor não admita), de Carlos Drummond de Andrade a Ascenso Ferreira. Proposta que já resultou em retumbantes fracassos qualitativos - basta o discófilo atento verificar sua coleção de nordestinos da geração 70 - e que nada traduz de excepcional ao menos enquanto proposta.
Porque o problema é a execução da proposta. E nenhuma execução poderia estar menos voltada à expectativa comercial do que a adotada por Alceu em Cavalo de Pau. De cara, ele radicalizou a definição estética. 'Eu acredito que a grande poesia brasileira já não mora nos livros, mora também nos discos, na música popular. Resolvi assumir o poeta que sou e fiz um disco de poeta e para poetas. Descobri identidades entre minha poesia e a poesia de Drummond, de João Cabral de Melo Neto. Estou dizendo em voz alta que sou poeta'.
Daí que as faixas são dedicadas a Bandeira, Cabral, Drumond, a 'todos os poetas repentistas da grande nação nordestina' e a mais algumas pessoas de outras áreas ou assemelhadas. Além disto, Alceu musicou um poema de Ascenso Ferreira ('Maracatu'), o que lhe valeu aborrecimentos com a família do poeta falecido. Aborrecimentos contornáveis - mais contornáveis, ao menos, do que o brio ferido quando encontrou Drummond num restaurante e a ele se dirigiu:
'Cheguei perto e comecei: 'poeta, eu dediquei uma composição ao senhor'. Ele, sem levantar os olhos, foi logo dizendo: 'não, não quero saber, não quero isto, já estou muito velho, você me desculpe'. 'Fiquei arrasado'.
Tudo bem, porque o poeta deve estar cansado do assédio por parte dos jovens 'talentosos'. Não nos esqueçamos de que jamais se pronunciou sobre a versão musical de 'José', abominavelmente cometida por Paulo Diniz, há alguns anos. Tudo bem, ainda porque a poesia de Alceu é melhor do que a distração do poeta. E tudo muito bem porque Alceu é hoje a grande estrela de sua companhia, a Ariola.
O que tem jeito de incongruência. Um disco racionalmente pensado para ser bom, despreocupado de ser vendável, passa a ocupar o trono dourado e reservado às - quase sempre - forjadas estrelas de primeira grandeza. Surpreendemos, um dia, Ney Matogrosso, dizendo não saber porque Alceu não tinha acontecido, até então. Surpreendemos Geraldinho Azevedo, surpreendido, desconhecendo a que atribuir a súbita ascenção do velho amigo. "
(*) Na verdade esse fato aconteceu em 1975, no show Vou Danado pra Catende, e não naquele período
continua
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