Em 1973 João Donato ainda era um músico pouco conhecido no Brasil. Apesar de ter sido atuante na Bossa Nova, e ter gravado dois discos instrumentais antes de ir morar nos Estados Unidos, Donato ao voltar ao Brasil naquele ano foi fazendo contatos, formando novas parcerias e iniciando uma nova fase em sua carreira. Dessas novas parcerias, nasceriam discos fundamentais como Quem É Quem (que ele estava lançando na época) e Lugar Comum, além do trabalho como arranjador. Em sua edição de 265/08/73 o jornal do Comércio, do Rio, trazia uma matéria sobre o músico, assinada por Tárik de Souza:
"Envolve a classe dos músicos uma tradição de desapego, de despreocupação com os problemas que afligem a maioria das outras categorias profissionais. 'Músico é desligado', costuma-se dizer, sem muitos contra-ataques, o que prova que pelo menos parte da tese deve estar certa. Há, porém, graus de desligamento, se é que se pode dizer assim. Músicos como Sérgio Mendes ou Antonio Carlos e Jocafi, devem até ser alistados entre investidores mais que razoáveis, ainda que seu capital seja a música. Em compensação, João Donato, 39 anos, 25 como músico, apenas dois elepês individuais gravados no Brasil, está no pólo oposto. Viveu treze anos nos Estados Unidos, entre fases de opulência (morava em Los Angeles, cidade dos milionários de Hollywood e chegou a ter três carros) e quase miséria. Em Nova Iorque, recusou um hotel pago por seu amigo, o baterista Dom Um Romão, porque 'era o paraíso das baratas da cidade'. Só conseguiu voltar para o Brasil porque 'vendeu' seis horas de gravação, o equivalente a sete faixas 'daquelas longas' a um produtor de jazz que estava montando sua etiqueta. 'Ele disse que tinha somente aquele tempo no estúdio e eu devia me virar com ele. Era a maneira de conseguir um adiantamento para comprar a passagem, e eu gravei o que me veio à cabeça. 'Afobado - queria chegar antes do Natal - nem esperou o disco ficar pronto. Avisou seu produtor, John Fields: 'Para a montagem chame o Eumir Deodato. Ele sabe o que eu gosto e o que deve ser selecionado'. E o misterioso elepê Donato/ Deodato, que escala vertiginosamente o hit-parade americano, ainda não chegou ao Brasil, portanto João sequer sabe quais são suas faixas. O dinheiro que pode lhe render seu primeiro sucesso ele nem consegue calcular, mas no mínimo deve satisfazer suas curtas ambições: 'ter um lugar onde eu possa escutar música sem incomodar os vizinhos'.
Por enquanto Donato mora na pequena cidade de Paracambi, Estado do Rio, no caminho para Vassouras. E gravou seu terceiro elepê nacional, Quem É Quem (Odeon), que sai essa semana. Para variar há muita coisa no disco sem explicação lógica, ao menos para os que encontram alguma sistematização na lógica de um músico. 'Que existe, existe uma outra galáxia, você duvida?' pergunta Donato que não sabe explicar o título do elepê nem porque 'de repente vi que o clima da gravação me empurrava para cantar - e eu cantei pela primeira vez na vida'. Por acaso também a cantora Evinha, uma das afinadas coristas do disco, falou que estava com medo de gravar. Suas palavras foram registradas, antes da faixa Terremoto (escrita por Donato enquanto Los Angeles era sacudida por um tremor de terra). 'O que ela disse ficou dentro do clima da música e nós deixamos gravado.'
O acaso, portanto, é mais parceiro que inimigo de João Donato. Se é necessária uma prova de prestígio entre a classe, de Quem É Quem participou um verdadeiro Who's Who da música brasileira. Gaia e Laércio de Freitas nos arranjos, Bebeto (do Tamba Trio), contrabaixo, Norato, trombone, Naná, percussão e Nana Caymmi, vocal. E João tocou seu piano elétrico explosivo e latejante, diferente da maioria dos músicos que usam este instrumento eletrificado, não fez por menos: pegou uma variedade deles (órgão, piano elétrico, mellotron) e foi para sua casa, em Los Angeles, de onde só saiu com dezenas de folhas anotadas 'com muitos barulhinhos e combinações que eles produziam entre si' e dez músicas compostas com eles. Por isso, nota-se, em Quem É Quem ele é quase um mestre no instrumento. Numa pasta de couro que o acompanha sempre está uma repleta e volumosa agenda dessas de propaganda, onde anota o que fazer até com semanas de antecedência. João Donato, acreano de Rio Branco, pode não ter realizado o sonho que formou quando ainda menino andava no colo do pai, um policial militar, fazendo viagens de instrução nos teco-tecos da região: queria também voar como o pai. Mas não é impossível que ao menos uma parte considerável de sua atenção esteja pelos ares, procurando um tipo especial de interesse. Conta, por exemplo, que já conversou com uma estrela usando o pisca-pisca de uma caminhão parado e há tanta convicção em seus olhos penetrantes e inquietos que desaparece a hipótese de qualquer brincadeira. Ele fala sério quando narra o nascimento A Rã, incluída no elepê, antes gravada por João Gilberto com o nome de O Sapo.
'Aquele saxofonista, o Stan Getz, bebe muito, e ficava inchado como um sapo, daí a homenagem da música. Mas, na verdade, ela deveria ser uma parceria minha com o João Gilberto e o Tom Jobim. Imaginamos cada um uma espécie diferente de sapo coaxando, o corongodó, o casainguê e o quiringuidin, que repetidos formaram a letra da música, que por fim não quer dizer nada.'
Mesmo passando por tantos acidentes, no entanto, o resultado do elepê de João Donato é mais animador. Com a eletrificação, seu sensível piano de discos tocantes como Muito à Vontade ou A Bossa Muito Moderna de Donato perdeu em emoção e ganhou em balanço. A voz - rouca e arrastada ('e eu ainda estava resfriado na gravação') - passa para o ouvinte o que transmitia o piano. Donato ficou à vontade a ponto de mandar um esotérico recado a seus amigos de Paracambi, na faixa Ayê, que por um mistério inexplicável foi o nome sonoro que ele encontrou para descrever a cidade. Em resumo, como diz a letra, 'Ayê, é o que você quer dizer'. Seu elepê ainda deve ser uma surpresa para os que deixaram de acompanhá-lo na época da bossa nova, quando foi embora do Brasil. João é, porém, até anterior a este tempo, e pode ser relacionado entre os decisivos precursores do movimento. Com doze anos desembarcava de Rio Branco no Rio de Janeiro, porque com a mudança política do Território do Acre, ficava extinta a Polícia Militar e seu pai resolveu trocar de cidade. Dono de um acordeon desde os três, quatro anos, ele aos 14 anos já tocava profissionalmente, 'porque tinha aparência de mais velho'. Na década de 40 a moda eram os conjuntos vocais e ele foi unir-se aos extintos Namorados da Lua, com Miltinho e Nanai, depois da saída de Lúcio Alves, fundador do conjunto. 'Com ele ficou o copyright e nós tivemos que cantar só com o nome de Namorados'. Antes do novo batismo, porém, o conjunto ainda se chamou Os Modernistas por algum tempo, gravando um de seus sucessos, a marcha Que Calor, para o carnaval. Extinta a fase a a moda, Donato experimentou muitos conjuntos e até o trombone, participando de várias gravações como um fantástico Dance Conosco, produzido pelo flautista Altamiro Carrilho, onde Milton Banana tocava bateria e Ed, que ainda se chamava Eduardo Lincoln, piano. Ex-acordeonista do Cabaré Dancing Avenida, Donato desistiu de estudar depois de ter repetido quatro vezes a quarta série. Gravou tocando acordeon (Invitation), participou de um trio onde não havia bateria, tocou com a então famosa orquestra do maestro Cópia no Copacabana, um programa que era transmitido 'direto' pela Rádio Nacional à noite e fazia a diversão dos colegas: eles ficavam marcando o tempo de atraso diário do acordeonista. Em sua tortuosa carreira, Donato tocou também seu acordeon na música nordestina, sucesso nacional na década de 50 (´pergunte ao Luiz Gonzaga se eu não era bom'). Fazia ponto no programa Manhãs na Roça de Zé do Norte, com a mesma naturalidade com que depois gravou várias músicas, já nos EUA, com meu chapinha Cal Tjader, um dos maiores vibrafonistas do jazz. Porque seu conjunto foi desmantelado por Sérgio Mendes (contratou de uma vez o baixista e o baterista), Donato convidou, praticamente para preencher o espaço na boate El Matador, os astros Chet Baker (piston) e Bud Shank (sax). O trio acabou se desentendendo e Donato parou suas apresentações durante um bom período, vivendo de gravações esporádicas (foi considerado pelo San Francisco Chronicle, 'o maior pianista brasileiro') e principalmente direitos autorais. Chris Montez e Sérgio Mendes, entre os comerciais, além de muitos músicos importantes (Herbie Mann, Cal Tjader, Wes Montgomery, Tito Puente, Mongo Santamaria) gravaram suas músicas, embora nenhuma delas seja especialmente conhecida no Brasil. Uma vez o sisudo arranjador alemão Claus Oggerman ligou para ele da Europa. tinha ouvido um de seus discos e, entusiasmado, queria convidá-lo para gravar um elepê 'cheio de violinos'. Viajou para o Japão integrando o Brasil 66, na troupe de Sérgio Mendes e lá recebeu um elogio insuspeito, do diretor da gravadora Blue Tamb; 'Quando ouço seus solos fico arrepiado, queria gravar com você'. Pronto o disco, ele se chamou A Bad Donato (Mau Donato, ou quem sabe, O Pior de Donato), mais um título que ele não sabe porque caiu sobre uma gravação sua.
E muitas outras histórias que pela profusão e algunm surrealismo, quase o equiparam a um amigo e companheiro, João Gilberto, com quem viu nascer a bossa nova. ('Era difícil dizer quem fazia o que, cada hora aparecia um com coisas novas, foi uma criação em conjunto'). Donato explica seu caso raro de não-consagração com o movimento, por causa da 'bobeira' que me impediu de participar do show do Carneggie Hall em 62: 'Inclusive eu já estava lá e o pessoal me convidou'. De lá saíram todos com gravações acertadas, conta ele, sentado num bar próximo à gravadora Odeon, onde se reúne o clube do qual é relações públicas, o 'Melancia - 90% água'. Gorro na cabeça, sandálias japonesas e roupa escura, ele inspira simpatia em seu jeito desorganizado. Acredita que conhece o motivo dos músicos chamarem-se de bichos. Foi na época que eu tocava no Copacabana e numa excursão a São Paulo fiquei conhecendo o trombonista Edson Maciel, o Edson Maluco, de quem sou fã. Depois de cada solo a gente se beijava na boca, e o pessoal formava uma roda para assistir e chamar a gente de bicha. Com o tempo o tratamento de agressivo passou a carinhoso.' Absurdamente desarmado contra as repressões das cidades ('o beijo era porque a gente se amava') Donato, desquitado, uma filha oficial e várias 'por aí', acredita que o amor realmente move o mundo e tudo deve ser feito nesse clima. Não entende, por isso, o corte de uma de suas músicas, só pelo nome Gol de Coréia (o resto da letra, como sempre, nada tinha a ver com isso). E da censura dos versos de outra, Me Deixa, que acabou saindo apenas instrumental. 'Olha bicho, isso não tem explicação' "
Mesmo passando por tantos acidentes, no entanto, o resultado do elepê de João Donato é mais animador. Com a eletrificação, seu sensível piano de discos tocantes como Muito à Vontade ou A Bossa Muito Moderna de Donato perdeu em emoção e ganhou em balanço. A voz - rouca e arrastada ('e eu ainda estava resfriado na gravação') - passa para o ouvinte o que transmitia o piano. Donato ficou à vontade a ponto de mandar um esotérico recado a seus amigos de Paracambi, na faixa Ayê, que por um mistério inexplicável foi o nome sonoro que ele encontrou para descrever a cidade. Em resumo, como diz a letra, 'Ayê, é o que você quer dizer'. Seu elepê ainda deve ser uma surpresa para os que deixaram de acompanhá-lo na época da bossa nova, quando foi embora do Brasil. João é, porém, até anterior a este tempo, e pode ser relacionado entre os decisivos precursores do movimento. Com doze anos desembarcava de Rio Branco no Rio de Janeiro, porque com a mudança política do Território do Acre, ficava extinta a Polícia Militar e seu pai resolveu trocar de cidade. Dono de um acordeon desde os três, quatro anos, ele aos 14 anos já tocava profissionalmente, 'porque tinha aparência de mais velho'. Na década de 40 a moda eram os conjuntos vocais e ele foi unir-se aos extintos Namorados da Lua, com Miltinho e Nanai, depois da saída de Lúcio Alves, fundador do conjunto. 'Com ele ficou o copyright e nós tivemos que cantar só com o nome de Namorados'. Antes do novo batismo, porém, o conjunto ainda se chamou Os Modernistas por algum tempo, gravando um de seus sucessos, a marcha Que Calor, para o carnaval. Extinta a fase a a moda, Donato experimentou muitos conjuntos e até o trombone, participando de várias gravações como um fantástico Dance Conosco, produzido pelo flautista Altamiro Carrilho, onde Milton Banana tocava bateria e Ed, que ainda se chamava Eduardo Lincoln, piano. Ex-acordeonista do Cabaré Dancing Avenida, Donato desistiu de estudar depois de ter repetido quatro vezes a quarta série. Gravou tocando acordeon (Invitation), participou de um trio onde não havia bateria, tocou com a então famosa orquestra do maestro Cópia no Copacabana, um programa que era transmitido 'direto' pela Rádio Nacional à noite e fazia a diversão dos colegas: eles ficavam marcando o tempo de atraso diário do acordeonista. Em sua tortuosa carreira, Donato tocou também seu acordeon na música nordestina, sucesso nacional na década de 50 (´pergunte ao Luiz Gonzaga se eu não era bom'). Fazia ponto no programa Manhãs na Roça de Zé do Norte, com a mesma naturalidade com que depois gravou várias músicas, já nos EUA, com meu chapinha Cal Tjader, um dos maiores vibrafonistas do jazz. Porque seu conjunto foi desmantelado por Sérgio Mendes (contratou de uma vez o baixista e o baterista), Donato convidou, praticamente para preencher o espaço na boate El Matador, os astros Chet Baker (piston) e Bud Shank (sax). O trio acabou se desentendendo e Donato parou suas apresentações durante um bom período, vivendo de gravações esporádicas (foi considerado pelo San Francisco Chronicle, 'o maior pianista brasileiro') e principalmente direitos autorais. Chris Montez e Sérgio Mendes, entre os comerciais, além de muitos músicos importantes (Herbie Mann, Cal Tjader, Wes Montgomery, Tito Puente, Mongo Santamaria) gravaram suas músicas, embora nenhuma delas seja especialmente conhecida no Brasil. Uma vez o sisudo arranjador alemão Claus Oggerman ligou para ele da Europa. tinha ouvido um de seus discos e, entusiasmado, queria convidá-lo para gravar um elepê 'cheio de violinos'. Viajou para o Japão integrando o Brasil 66, na troupe de Sérgio Mendes e lá recebeu um elogio insuspeito, do diretor da gravadora Blue Tamb; 'Quando ouço seus solos fico arrepiado, queria gravar com você'. Pronto o disco, ele se chamou A Bad Donato (Mau Donato, ou quem sabe, O Pior de Donato), mais um título que ele não sabe porque caiu sobre uma gravação sua.
capa de Que É Quem |
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