Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Caetano Fala do Disco Cê (2006) - Revista Bizz

Em 2006 Caetano lançou o disco , com uma sonoridade mais elétrica, voltado para o rock. O lançamento dividiu a crítica, mas de uma forma geral, o disco foi bem recebido. Na edição de dezembro daquele ano, a revista Bizz fez uma matéria com Caetano, assinada por Paulo Terron, incluindo uma entrevista, onde o músico baiano fala de seu disco, do show originado do disco, de rock e sua proposta musical. Fala também de Devendra Banhart, um músico americano, que se declarava na época um fã devotado de Caetano. Segue abaixo a transcrição da entrevista:
"Tradicionalmente, sua música é classificada dentro do que se convencionou chamar de MPB, que, apesar de ter 'popular' no nome, tem um ranço elitista. Mas, nos últimos anos, você parece interessado em ressaltar suas ligações com o pop. É isso mesmo?
Não, não é. Essa sigla MPB é mais ou menos contemporânea do nascimento do tropicalismo. Talvez ela tenha se solidificado desse jeito depois que eu já tinha ido para Londres. O tropicalismo foi (popular) o tempo todo. E o meu trabalho em seguida também. Isso é o que marcou a diferença entre o meu grupo - que veio da Bahia e se uniu a uma mini-minoria de pessoas de São Paulo, representada sobretudo pelos Mutantes, pelo glorioso Rogério Duprat e Júlio Medaglia. A gente tinha uma reação contra o elitismo da segunda fase da bossa nova, que não tinha ganhado ainda esse apelido de MPB. Na verdade, essa abreviatura era usada para designar a segunda fase da bossa nova e, depois, virou uma palavra que se referia a todo um espectro amplo de criação musical difícil de definir como estilo e que foi, inclusive, muito influenciada pelas rupturas do tropicalismo. Então, não é assim. Não gosto, acho que o apelido é um nicho, ninguém sabe exatamente o que põe ali. Porque elas são apenas um quebra-galho para as pessoas poderem conversar. No meu caso, é muito desorientador utilizar o termo e chegar a formulações como essa que você apresentou aí.
Logo que seu disco saiu, houve certa resistência das pessoas que gostam de rock. Lendo alguns blogs, reparei que muita gente dizia 'Mas Caetano vai fazer rock agora?!? Como ousa?', como se o rock representasse alguma espécie de 'nível' e como se você não tivesse participado da história do rock brasileiro. Esse tipo de percepção te irrita?
Não, porque houve muito menos disso do que eu esperava. Eu supunha que fosse haver mais. Mas acontece que o disco é suficientemente bom e as pessoas não são tão mesquinhas, então há uma tendência a ter uma visão mais equilibrada do que essa ingênua que você acabou de descrever. São opiniões às vezes nascidas de pessoas que, muito jovens, não têm essas informações que você tem e, tampouco são esforçadas pra ter uma visão mais corajosa das coisas. Essa reação muito fácil, de desqualificar porque não-venha-fingir-que-você-faz-parte-da-minha-tribo-porque-você-não-faz-parte-da-minha-tribo-, é primária porque toda história não está sendo reconhecida. E também porque essa visão da organização das pessoas em tribos é uma coisa muito vulgar e muito empobrecedora da vida. Ela parece dar razão justamente àquelas pessoas, àqueles pensadores e também àqueles produtores de cultura - tanto popular quanto quanto alta - que querem provar que esse mundo é abjeto, que só merece o nosso desprezo. Então essas pessoas estão inadvertidamente caindo nessa armadilha. Mas é assim mesmo, a vida é engraçada.
As letras de , supostamente, foram inspiradas por sua separação. Você mesmo já disse que elas causaram muita dor. É difícil ser solteiro? 
Talvez seja. Pelas estatísticas, dizem que as pessoas casadas são mais felizes. Mas eu não diria que as dificuldades, sobretudo as que aparecem, que eu superei, são da separação, e não da vida de solteiro. Nem todas as canções são documentais, embora todas tenham ecos desse clima emocional. Algumas são diretamente documentais, como 'Não me Arrependo' ou 'Waly Salomão'. Essas são diretamente documentais, as outras não.
O disco também lida com a questão da idade. Você inclui no show 'O Homem  Velho' (de 1986). Ouvindo a letra dessa música, faz sentido no contexto de . Foi por isso que você a escolheu?
Essa é uma das razões - uma das principais razões - porque aparece explicitamente na música 'Odeio': 'Só eu, velho, sou feio e ninguém'. (E também aparece) em uma que fiz mas não gravei porque só ficou pronta depois do disco, 'Amor Mais Que Discreto'. 'O Homem Velho' está bem dentro desse ambiente. Por outro lado, ela é de Velô, que era um disco um tanto mais roqueiro. Essa é outra razão, eu queria cantar uma música do Velô e, quando deparei com essa canção, pensei: 'É essa!'
Você concorda em dizer que esse é um show de rock?
Não é errado, mas não acho que dizer isso caracterize bem o show. É adequado, suficientemente. Se alguém quiser dizer isso, não me incomoda. Os meninos que tocam comigo tampouco vão se incomodar. Mas, se alguém quiser dizer que não, também não vou me incomodar. Também está certo porque é um show meu, entende? Para mim esse show se parece mais com Livro ou Noites do Norte do que um show do Luxúria. Rock é uma denominação muito genérica de um acontecimento de quebras da tradição da música americana e que foi, ao mesmo tempo, como muita gente acredita, um assassinato da grande canção americana. Se você ler a história da bossa nova escrita pelo Ruy Castro (Chega de Saudade), a entrada do rock é assim:
'Então vieram aqueles caipiras ignorantes a acabaram com essa tradição deslumbrante de Cole Porter, Gershwin e Irving Berlin'. Por outro lado, se você ler esse cara que escreveu Criaturas Flamejantes (Nick Tosches), ele diz o contrário. Você sente nele aquele desprezo pela tradição americana, porque ele foi jovem quando o rock apareceu, vindo do sul, daquela gente ignorante, meio primária. Para ele é uma liberação, para muita gente foi assim. Eu estava morando no Rio quando Elvis aconteceu. Eu era amante da música brasileira tradicional desde menino. Música boa, bonita, bem-feita, bem cantada, bem tocada. Então, quando o rock apareceu, era lixo comercial aos meus ouvidos, era normal que fosse. Então é toda uma mudança, fiquei apaixonado pelo rock e fui ouvir os Beatles. Depois fui preso, fui para Londres, ouvia Pink Floyd, Jimi Hendrix, James Brown... Aí me diziam: 'Pô, mas isso é uma coisa comercial, primária'. Ficaram de mal comigo, Edu Lobo, Francis Hime, Wanda Sá. Ficaram decepcionados, choravam, viravam a cara. Foi um drama porque a gente tava apoiando o rock e introjetando elementos dele na nossa música. Não quero ser posto no nicho da MPB, mas tampouco quero ser colocado no nicho do rock. Esse negócio de tribo, de rock... Parece que você está entrando em um negócio... E eu sou ativo, estou fazendo uma intervenção pretensiosa! Eu sou cabeça! Já ouvi essa palavra sendo usada sobre mim como se fosse uma espécie de ironia, pejorativa. Não é! Eu sou cabeça!
Em uma Bizz de 1990 tem uma declaração sua sobre o rock que diz o seguinte: 'Nunca procurei fazer um show como o dos Rolling Stones ou dos grupos de rock. Rock é um excesso de energia, de uma turma de adolescentes, de países onde as pessoas se alimentam muito bem. Não é um carinha, um frango de macumba, chegar no palco no Brasil e fingir que está esbanjando energia...'

 É isso mesmo. Você não vê que os apaixonados críticos de rock ficam com muita impaciência, muita raiva com relação aos grupos de rock brasileiros? É muito difícil você competir com os americanos, só os ingleses é que chegam lá meio que perto, porque são da língua inglesa e porque têm dinheiro também.
 A língua inglesa é a língua da dominação. Os britânicos deram aquele upgrade de respeitabilidade, mas raramente estão lá, na força da energia.
Você não acha estranho que, enquanto você volta um pouco pro lado rock, vem uma pessoa de fora - como Devendra - puxando para o lado contrário, querendo ser mais brasileiro? 
Você acha que ele está puxando para o lado contrário? O David Byrne fez uma virada nesse negócio. A apreciação virou e nunca mais desvirou, e nem pode mais desvirar. Quando fui para Londres, em 1969, tudo que a gente representava parecia um pouco com bossa nova, com música brasileira, com samba. Veja o caso dos Mutantes: achavam que pareciam com os Beatles, que eram ruins. Achavam que não era original e não tão bem-feito quanto os Beatles. Era o que eles diziam - e não estavam errados, porque os Mutantes não eram meros covers, eram criativos na mesma linha. É o que eu achava na época, agora eles acham também. Mas isso só veio a ser achado depois do David Byrne, que tem a cabeça mais livre. Vi um crítico de música americano dizendo que não tem ninguém igual a Lulu Santos no rock do mundo. Não tem ninguém igual, é um dos melhores do mundo porque ele tem a capacidade dos melhores americanos. Para mim, Lulu é dos melhores artistas que o Brasil já teve. Essa gente que quer esnobar Lulu, que pensa que Lulu não é rock, está por fora! Lulu é mais rock do que 99,9% deles. E o Devendra não quer e não faz um movimento no sentido contrário. A minha música que ele cantou no festival ('Lost in the Paradise') eu fiz em inglês antes de sair do Brasil. Ela fala diretamente com essas pessoas que produzem o pop do mundo.
Aliás, ele me pediu para dizer que, quando você cantou 'Io mismo un burro que um grand professor' (em 'Cambalache', 1969), estava prevendo o encontro de vocês. Ah, ele também quer saber o que precisa fazer para que você participe de uma música dele, 'mesmo que seja só um suspiro'...
Não precisa fazer muita coisa: basta ele dizer onde e quando vai gravar que eu anoto na minha agenda. Adorei ele, achei gente fina à beça. Gostei do show dele no Rio, o que ele fez coma minha canção foi lindo. Essa coisa de burro e professor... Isso eu cantei, mas não acho que tenha sido uma profecia do meu encontro com ele. "


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