Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Alceu Valença - Revista Pipoca Moderna (1983) - 2ª Parte

" Verdade que Alceu Valença ('Valência', quando atende ao telefone e fala com 'Anelísica', ou seja, Anelise, ex-mulher e atual empresária) não vinha tão mal assim. Não foi bem no início mas, voltando da Europa, vendeu 80 mil cópias de Coração Bobo (1980) e caiu para 70 mil, com Cinco Sentidos (1981), em plena crise. O crescimento até às quatro centenas de milhar, entretanto, não encontrou ainda explicação coerente.
Ainda mais se considerarmos a fatia de público que vem consumindo o trabalho. A garotada - o termo é dele - está despertando para a qualidade? Capitão por quê?
Alceu tenta vagamente uma explicação: 'eles estão sentindo falta de líderes e aí transferem tudo para quem surja com mais força'. Explicação não convincente. Para entender a poesia e a abrangência musical de Cavalo de Pau é necessário mais do que, simplesmente falta de liderança.
Durante muito tempo, seu nome foi associado ao adjetivo histriônico: o histriônico Alceu Valença, etc. Seria, talvez, o momento de substituir os qualificativos.  Que tal carismático? Porque histriônico pressupõe certa elaboração que, no caso, parece intrínseca ao personagem. Alceu fala com as mãos, com os olhos, com todo o corpo, com a barba. Aliás, não fala: recita, declama. Como se fosse um grande cordelista transferido cultural e geograficamente para a grande cidade e nela apenas realimentasse a verve do repente e da cantoria e dela recebesse, absorvendo-a, a transfusão de novos elementos.
Cavalo de Pau é um disco de síntese, consideradas as sintaxes poética e musical.  A música título é, talvez, a mais bem realizada fusão do baião com o blues jamais conseguida - embora muito perseguida - por qualquer de nossos criadores. As duas formulações musicais estão ali, límpidas, precisas e personalizadas, embora fundidas à confusão total e final de suas raízes e origens, quem sabe até aparentadas. O já citado 'Maracatu' não é apenas um maracatu, mas a integração do maracatu na nova ordem de coisas que a linguagem eletrônica dispõe. 'Tropicana', música de Vicente Barreto com letra de Alceu, é um xote que dignificaria, sem estranhamentos, Jackson e Paul McCartney, no tempo dos Beatles. Duvidam? Inventem uma letra qualquer em inglês e substituam o 'ai, ai, ai, ai' por 'ye, ye, ye, ye'. 'Como Dois Animais' resume novamente as tendências pop no binômio baião/blues. Pode?
Pode. De Porto Alegre ao Recife. o cidadão pernambucano de São Bento do Una, está fazendo delirar plateias, desmaiar mocinhas, mobilizar forças policiais que evitem pancadarias e machucaduras. Ninguém sabe dizer quem regeu este concerto louco de herói desgarrado. Ou que regerá o destino do artista precioso em sua criação, efetivo em seu discurso, enfático em suas convicções.
No terceiro de nossos encontros para falar deste fenômeno, vivíamos situações inversas. Alceu estava curtindo uma ressaca, eu estava preparando a minha. Bebemos chá (ele) e uísque (eu). Perguntei-lhe , como perguntam os repórteres da Rede Globo, qual era a sensação de ser superstar. Ele respondeu-me calmo (até onde pode ser calma uma pessoa que se expressa por gestos largos e voz de cantoria e desassombrado:
'Véio, não sei o que é isso, não. Sei que não estou na moda, essa é outra história. Moda é coisa que se fabrica. Não me sinto fabricado, não sou fabricado. Também não pretendi ficar rico, apenas mostrar minhas coisas, acredito que boas, sem freio na criatividade. Não mudei radicalmente nada na minha noção do que seja um trabalho decente, honesto. Sabe, véio, a gente está vivendo um tempo em que muita gente vem usando a cultura popular como ponto-de-venda. Eu não vou usar meu sotaque nordestino, para vender disco - ainda mais nessa época em que tem tanta gente metendo a mão na cuia do cego. Eu, se puder, deposito lá. Se não puder, não tiro. Não estou atrás de fuçar raízes ou discriminar, diagnosticar o que seja ou não cultura brasileira. Meu trabalho é um misto de de fé e prazer. Fé em nós, prazer para nós'.
O bom disto é constatar que o universo musical brasileiro não acaba - nem começa - em Alceu Valença. Qualquer simplificação, agora, seria e soaria idiota. Na cabeça dos garotos que escrevem a tal faixa - 'Capitão, nós estamos com você' - deve estar acontecendo alguma coisa. Nem que seja o desejo reprimido, enfim identificado, de estar na praça fazendo amor 'como dois animais'. Animais racionais, na praça racional de um ´país racional regido por estrutura de poder e prazer racionais. As dúvidas nem tanto assim metafísicas de Alceu Valença ('cavalo doido, por onde me levas/ depois que eu vim parar na capital?') são inquisições sadias em nome de uma sadia construção do futuro. Falta-nos, eventualmente, encontrar a capital. Mas temos tempo, estamos em busca. Acreditando na sorte menos que na vontade. O tombo e suas eventuais sequelas serão absorvidas pelo fluxo orgânico que será, fatalmente, mais proteinizado - fala Belchior! - que o de nossos pais. "


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