terça-feira, 29 de junho de 2021
Rita Lee Fala Sobre Os Mutantes (Revista Bizz -2000)
Em novembro de 2000 a revista Bizz publicou uma grande entrevista com Rita Lee, Arnaldo Batista e Sérgio Dias sobre a trajetória dos Mutantes. Como se trata de uma matéria extensa, optei por dividir a publicação em três partes, trazendo separadamente as respostas de cada um dos membros, separadamente. Para começar a série de três postagens, destacarei as respostas de Rita Lee:
“ - O que você acha da banda ser mais respeitada e reconhecida hoje do que quando estava em atividade?
Rita – Acho totalmente coerente com os Mutantes esse reconhecimento au grand complet só agora no terceiro milênio. Os gringos realmente chegaram às Índias Tropicalistas com 30 anos de atraso, o que me dá motivos mais para fazer piada do que para ficar deslumbrada. O futurismo sonoro que rolava solto enquanto participei da banda acontecia de uma maneira natural e espontânea, nada era planejado. Havia uma busca por um som ‘não-popular’, nunca tivemos intenção de fazer música para o consumo daquela época. Talvez tenha sido esta estética do ‘scape from planet Earth’ ou do ‘hay gobierno soy contra’ que fez com que os Mutantes se sentissem mais em casa no terceiro milênio do que na época em que existíamos.
- Os Mutantes tinham consciência da profundidade do que estavam fazendo, de seu papel revolucionário?
Rita – Agimos sem qualquer consciência da revolução que posteriormente nos creditaram. Rock era nosso estilo predileto e não nos sentíamos peixes fora d’água nesse panorama. Tentar compensar a defasagem tecnológica com a criatividade caseira virou um dos motivos pelos quais os Mutantes sempre estiveram anos-luz à frente de seu tempo.
- O que seriam os Mutantes, não fosse terem cruzado com Rogério Duprat e com os tropicalistas?
Rita - Não tenho o menor constrangimento de admitir que, sem os tropicalistas, jamais os Mutantes teriam chance de se projetar com a mesma atenção que despertaram. O futuro de grupos daquela época que só se interessavam por cantar em inglês ou faziam covers de sucessos estrangeiros não era lá tão amplo...
- Como, detestando MPB, deu-se a mistura que, no fim das contas, teve forte presença de sonoridades nacionais?
Rita – Havia esse rótulo de ‘antinacionalista’, mas era puramente por sermos do contra. Nem sabíamos direito contra o quê (risos). Era uma maneira nossa de esnobar quem nos esnobava, ou seja, a MPB, a Jovem Guarda... Criamos fama de ‘estrangeirados’ no meio, e assim ficaríamos eternamente se um belo dia não tivéssemos encontrado Gil, que de MPB radical e de Jovem Guarda não tinha nada. Foi a fome com a vontade de comer da gente.
- Qual era o papel de Dinho e Liminha?
Rita – Nos Mutantes havia uma lei preestabelecida: independente de quem escrevesse letras e músicas, os ‘três patetas’ assinariam, aprendemos isso com Roberto e Erasmo Carlos (risos). Liminha entrou e começou a apresentar composições da autoria dele, mas a lei continuou, apesar de eu achar isso meio tirânico e injusto. Passou-se a creditar a Liminha apenas a co-autoria de certas músicas e letras que, na verdade, eram só dele, como ‘Top-Top’, ‘Portugal de Navio’... Dinho era uma figura muito engraçada, o apelido dele era ‘professor de pau duro’, porque tinha um jeito de velhão, mas só gostava de namorar menininhas muuuito jovens (risos). Praticamente não participava do processo criativo, era uma pessoa muito amiga e sempre tentava resolver os problemas de ego que volta e meia surgiam, usando da diplomacia elegante.
- Quando as drogas entraram no grupo? Como elas expandiram o som?
Rita – Até o exílio dos mestres, os Mutantes só usavam maconha, uma vez experimentamos ayahuasca e em outra ocasião meia pedrinha de mescalina. Quando fomos nos apresentar no Olympia de Paris, encontramos com Peticov e aí, sim, é que a festa começou. Apenas Serginho se recusou a experimentar LSD, mas o resto da banda entrou de sola. Ficávamos horas e horas, dias e dias, semanas e semanas tocando. Nada de muito objetivo musicalmente, mas grandes viagens em grupo. Nessas é que o som da banda começou a tomar os tais rumos progressivos. Não foi da noite para o dia, mas a ideia de ser ‘uma pessoa só’ passou a assombrar Arnaldo, que praticamente obrigou Serginho a tomar uma única pedrinha, senão ele estava fora do grupo (risos).
-Até que ponto o início da carreira-solo incomodou os Mutantes?
Rita – Barenbein era um produtor mais atento, foi ele quem me conectou com Nara Leão, que tinha acabado de fazer a versão de ‘Joseph’, de George Moustaki, mas não pretendia gravar e estava procurando alguém com ‘voz de anjo’ para fazê-lo. Isso aconteceu enquanto os Mutantes estavam brigados. ‘José’ foi um sucesso estrondoso, algo lamentável para a imagem de ‘anti-comerciais’ dos Mutantes, que, claro, ficaram putos comigo porque o público exigia a porra da música que tocava pra cacete em todas as rádios do país. Enfim, acho que cantei uma única vez e nunca mais. Talvez Barenbein tenha razão, deve ter pintado um ciúme danado depois disso.
- Hoje É O Primeiro Dia do Resto de Sua Vida é o segundo disco-solo de Rita Lee ou o último da banda?
Rita – Na época estávamos brigados, então o Midani me convidou para um projeto-solo ligado à Rhodia, que já havia me contratado para fazer shows nos seus desfiles. A ideia de gravar discos desses eventos era sempre planejada. Como os Mutantes ‘voltaram’, achei conveniente convidá-los para participar. Aliás, passei a vida toda considerando esses trabalhos como sendo da banda.
- O fim do seu romance com Arnaldo influiu em sua saída?
Rita – Eles estavam pretendendo fazer música progressiva, tipo Yes e Emerson, Lake & Pamer, portanto não haveria mais espaço para o deboche musical que coroou a existência do grupo até então. Virei persona non grata na nova proposta e, como fui contra essa estratégia furreca, escolheram me despachar na marra. Levei um bom tempo para curar a mágoa. Hoje, percebo que minha retirada foi fundamental para fazer os gols que fiz no Tutti Frutti e até agradeço aos céus por não ser responsável por aquele negócio de uma pessoa só...
- Você continuou acompanhando os Mutantes?
Rita – Quando deixei os Mutantes fechei a porteira, passei muito tempo não querendo papo com eles e até desejando no fundo do coração que se fodessem. Fiquei profundamente magoada, meus amigos do peito me deram uma facada nas costas para me matar... Acontece que aquele som explicitamente clonado foi, para mim, um exemplo de decadência criativa. Eu gostava de Yes e Emerson, Lake & Palmer, mas daí a copiar os caras era uma grande falta de imaginação. Hoje, quando os gringos mencionam Mutantes, referem-se exatamente à fase do meu tempo, o som ‘progressivo’ passou batido.
- Como é que você foi fazer abrir um show dos Mutantes em 1973 e, mais tarde, acabou cantando no disco-solo de Arnaldo?
Rita – Ué... fiquei semanas sem falar com os bofes, para quem convivia todos os dias isso é um tempão, não acha? Nessas semanas em que fiquei exilada, compus ‘Mamãe Natureza’ e ensaiei com Lúcia Turnbull umas gracinhas musicais, formando a dupla Cilibrinas do Éden. O empresário dos Mutantes soube disso e foi gentil me convidando para abrir um show deles no Phono 73, entendeu? No caso do Lóky?, eu já estava bem mais segura de que havia sido muito bom para mim ter saído dos Mutantes e, como sempre gostei das loucuras do Arnaldo, fui na boa. Aliás, o material gravado no Lóky? continha umas reminiscências da minha época, então ele achou justo me convidar para participar do disco.
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