quinta-feira, 24 de junho de 2021
O Impasse do Novo Samba (Jornal do Disco - 1980)
O samba, ritmo tradicional brasileiro, sempre sofreu transformações, e seria alvo de questionamentos e análises. Já nos anos 50, por exemplo, a bossa nova mudou a cara do samba de raiz. Logo em seguida o chamado sambalanço também trazia mudanças significativas em termos de andamento, ritmo e harmonia, e que anos mais tarde, daria origem ao samba-rock. Já nos anos 70 surgiu uma nova corrente, muito criticada, que ganhou a denominação pejorativa de "sambão jóia". Ainda no fim dos anos 70, o samba-rock sofreria mutações, originando o samba-funk, que trazia uma batida mais calcada no movimento black de origem americana. Logicamente o setor mais purista da crítica não era de aceitar bem essas mudanças, e por outro lado, os menos radicais viam com bons olhos e ouvidos atentos essas desdobrações rítmicas. Em sua edição de fevereiro de 1980, o Jornal do Disco, suplemento da revista Som Três trazia uma matéria sobre o assunto, assinada por Antônio Carlos Miguel. Numa introdução ao texto propriamente dito, ele analisa: "De um lado, o sambão-jóia rola pelas churrascarias: de outro, a vanguarda black propõe soluções, mas é crucificada pelos puristas. No meio, só os nomes da antiga obtém reconhecimento. Afinal, quando é que o samba brasileiro vai reconhecer que a hora é de união?". A ilustração usada nessa postagem é a mesma que aparece na matéria, mostrando um representante da comunidade black com uma indumentária americanizada, em meio a instrumentos elétricos e de samba. Segue a matéria:
Fala-se muito em explosão do samba, diz-se que ele foi o produto de maior sucesso da MPB nos anos 70. Mas, mesmo uma análise superficial desse fenômeno mostra que, na área do samba, surgiu pouca gente nova. No fundo, a 'explosão' teve contornos e características um pouco diversas das pretendidas pelos puristas da MPB. Excluindo-se os sambeiros diluidores - os benitos, tons e ditos e jocafis da vida - o pessoal da ativa ou veio da década de 60, caso de Paulinho da viola, por exemplo, ou era bem mais antigo. Da mesma forma que nos EUA foram redescobertos bluesmen como Howllin' Wolf e Muddy Waters, aqui, veteranos sambistas esquecidos voltaram a ter espaço. Cartola, Moreira da Silva, Nelson Cavaquinho, Clementina, Carlos Cachaça, Nelson Sargento e outros coroas da pesada estão aí, espalhando vitalidade, apesar de todo o gangsterismo nas escolas de samba, do sambão-jóia pasteurizado e da caretice do carnaval burocratizado. Enquanto isso, a garotada black do Rio, que nunca deixou de curtir sua batucada, descobriu que também estava próxima, culturalmente, de seus brothers do norte. Afinal, no início era a África. Assim, a rapaziada preferiu curtir bailes regados a funk e soul do que aturar um sambão de churrascaria ou uma quadra de ensaios cheia de turistas. Na verdade, foram estas novas/velhas sonoridades negras que, misturadas à eterna percussão do coração brasileiro, comandaram a explosão da nova música popular brasileira, a MPB de sucesso e qualidade, o 'novo samba' que nada tem a ver com a pasteurização imposta pelas máquinas de hits inconsistentes. Por mais que os puristas e parte da crítica tentem arrasar o fenômeno, incluindo o sambão-jóia na renovação de nossa música e negando o trabalho revolucionário da nova geração, os frutos do novo movimento já surgiram com toda força nos anos 70, prometendo colheitas ainda melhores nos anos que nos esperam. A melhor prova disso está no trabalho (e no sucesso) de muita gente com as antenas abertas.
Um dos primeiros que percebeu o lance e trabalhou em cima dele foi Gilberto Gil que, em 'Refavela', cantou: 'A Refavela/revela a escola de samba paradoxal/Brasileirinho/pelo sotaque/mas de língua internacional...' De lá para cá, Gil tem se aprofundado nesse caminho e a versão de 'No Woman No Cry' (Não Chore Mais), que o Brasil inteiro cantou, é uma bandeira de sua ligação com os ritmos negros de todo o mundo, uma prova de que a vanguarda da música negra brasileira não está nas churrascarias, mas na unidade cultural entre os povos de linguagem black. Já o Jorge Ben, com seu samba eletrificado, ultrapassou as fronteiras previsíveis. Surgido nos anos 60, influenciado pela Bossa-Nova, Ben recebeu guarida da Jovem Guarda, militou com o tropicalismo, para vir brilhar intensamente nos anos 70, cercado de jovens músicos do circuito rock e de companheiros do samba, ao mesmo tempo! Resistindo à incompreensão de boa parte da crítica, que ainda não conseguiu decodificá-lo, Jorge Ben distribui energia e espirituosidade com seu swing.
Outros artistas como Tim Maia e Cassiano fazem escola com seus soul-samba-canções. Macalé tem sido importante por suas conexões, cantando Ismael Silva e se apresentando com Moreira da Silva, que, do alto de seus 70 anos, é mais jovem que muitas cabeças que habitam o samba. Injetando renovação no samba e, ao mesmo tempo, bebendo de seu ritmo e malícia. Baby Consuelo não nega as influências de Elza Soares e Ademilde Fonseca. De Elza, a voz rouca – uma característica também das cantoras de blues - e a irreverência, a descontração total. De Ademilde - que deu uma canja no segundo disco de Baby - o pique do chorinho. Essas mixagens, que foram lançadas pelos Novos Baianos (grandes sambistas), não esquecem a pauleira do rock e as sonoridades do Caribe. Na versão que fez para 'Is This Love', de Bob Marley, Baby dá a receita com precisão: 'É amor!'
Na área específica da fusão funk/samba, há o trabalho da Banda Black Rio, que, com sua alquimia sonora, redimensiona ‘Na Baixa do Sapateiro’ de Ary Barroso ou cria hits como ‘Maria Fumaça’. Em seu segundo disco, Gafieira Universal, a banda aprofunda-se nessas misturas que trazem toda a vitalidade da música negra de norte a sul da América. Da mesma forma, Carlos Dafé, vindo do samba, tem feito a ponte com a funk music. O resultado é um som rejuvenescido, que soma os aspectos positivos das duas correntes.
Todas essas funções e influências explodem com mais vigor ainda no trabalho do artista mais importante de todo o movimento do novo samba: Luiz Melodia. Melô representa o que de mais novo tem o samba, informação regional e universal numa combinação perfeita de ritmos e maravilhas contemporâneas. Em seus três LPs lançados está presente essa síntese feliz e, em seus últimos espetáculos ao vivo, sente-se a maturidade de Melodia, hoje um cantor, compositor e performer no ponto. A fusão proposta por sua música pode ser exemplificada na versão para o antigo sucesso do veterano Zé Keti, ‘A Voz do Morro’. A interpretação de Melô, com arranjo de outro veterano, o maestro Severino Araújo, é impecável. Sem estar preso a raízes imóveis, Melodia é também o reggae, o xaxado, o blues.
Com os anos 80, mais espaço será aberto. Que se preparem os radicais, os comerciantes de sambão-jóia e os revolucionários de churrascaria, porque o novo samba está explodindo no xote, no baião, no frevo, no maracatu, no reggae, no blues e no soul. Quem não aceitar as evidências, não dançará...”
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No Brasil tudo acaba em samba.
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