Palavras Domesticadas

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terça-feira, 1 de junho de 2021

O Poeta Augusto de Campos Fala de Caetano Veloso


 Os tropicalistas sempre tiveram uma estreita ligação com os movimentos da vanguarda cultural brasileira, incluindo os concretistas. A recíproca era verdadeira, pois os criadores da poesia concreta viam nos trabalhos de Gil e Caetano uma renovação estética do texto de músicas produzidas no Brasil. Augusto de Campos, por exemplo, logo manifestou sua admiração pelo Tropicalismo, através de ensaios escritos ainda nos anos 60. Por isso foi convidado a escrever um texto de introdução ao fascículo dedicado a Caetano na Nova História da Música Popular Brasileira, publicada em 1976, a que ele deu o título de Qualquer Jóia, que abaixo reproduzo:

"O que ele fez, faz, está fazendo para ou pela música popular não há mais quem ignore. Ele explodiu a canção,levando-a a caminhos jamais palmilhados entre nós. Revolução. Depois da bossa-nova (um movimento 'jóia') tropicália (um movimento 'qualquer coisa'). Proibido proibir: sons em liberdade. Navegar é preciso: e desconhecido. Tudo comer: antropofagia. Metapoesia e metamúsica: nos discos e nos shows a melhor crítica-em-ação da música popular feita e por fazer.

Mas é impossível pensar Caetano apenas como 'músico popular' por mais que a isso deva  induzir uma história da música popular brasileira.

A imprópria ou insuficientemente chamada 'música popular' - que não é só música e nem é tão popular quanto as conotações do adjetivo fazem supor - é quase sempre uma poesia musicada. Queiram ou não, uma modalidade de poesia. Poesia-música. Ou música-poesia. Paradoxalmente, o texto poético, aqui, ganha o nome de 'letra'.

Em outros tempos esse gênero de poesia teve seus praticantes na área tradicionalmente batizada de 'erudita'. A poesia dos trovadores provençais dos séculos XVII-XVIII, toda ela feita para ser cantada e muitas vezes e, muitas vezes executadas pelos próprios autores. As canções inglesas da época elisabetana, onde há notáveis poetas-músicos como Thomas Campion, e músicos-poetas, como o alaudista John Dowland.

Dentro do âmbito popular, é um gênero que tem larga tradição e se manifesta mais instintiva e intuitivamente sem a cerrada elaboração dos artefatos eruditos.

Nos últimos anos, porém, essa poesia-música, antes confinada ao seu comportamento convencional, armou-se de recursos muito mais sofisticados, cruzou as linhas e invadiu as áreas cultas. Um fato novo, como ocorrência generalizada.

Depois da grande fase da poesia para ser vista, enfaticamente vista - a dos anos 50 e 60 -, houve um giro, uma mudança de veículo, privilegiando a audição. A poesia para ser ouvida, dos fins dos anos 60. Feita por poetas para serem vistos. Quase todos pré-para ou ex-universitários. O fato é que a partir desse momento, toda uma geração de poetas das camadas cultas urbanas partiu, decididamente para o som.

Em tal contexto, a atuação de Caetano, foi tremendamente significativa. Situando-se desde logo no grupo dos inventores, isto é, dos artistas vocacionados para a descoberta de territórios inexplorados. Caetano não se limitou a impelir a música popular, até então contida numa dinâmica cultural acanhada, a participar ativamente da renovação da linguagem artística. Baiano e estrangeiro, ele foi o nosso grande sincretista, Um novo antropófago, bárbaro e doce, capaz de ligar, em sua música aberta, em sua poesia-qualquer-coisa, as pontas das mais diversas poéticas potencialmente vivas, de Gregório a Pastinha, de Gil a Sousândrade, do rock a Smetack, do concreto ao Xingu.

Puxada por Caetano, a poesia-música rompeu as barreiras entre o popular e o erudito. E se expôs, radicalmente, com todos os riscos às largas e despreparadas plateias do consumo, levando a um extremo limite e tensão comunicativa entre a informação nova e o repertório coletivo de redundâncias. Vivas e vaias.

Mas é engano pensar que os seus produtos sejam meros intermediários entre a poesia culta e o público. Os críticos que assim pretendem minimizar a sua importância, aplicam-lhe padrões exclusivamente literários, de forma simplista e linear. Não percebem que se trata de uma arte com parâmetros próprios - ainda que porosa às demais - de uma poesia-ação, que não se faz só com palavras, mas com sons, voz, corpo. Poesia mais próxima da conversa que do verso.

Não. Se quiserem compreender esse período extremamente criativo de nossa vida artística, os compêndios literários terão que se entender com o mundo discográfico. No novo capítulo da poesia brasileira que se abriu a partir de 1967, tudo, ou quase tudo existe para acabar em disco.

'Nem todos sabem cantar, Não é dado a todos ser maçã para cair aos pés dos outros.' Nos discos de Caetano, o poeta-cantor, até o vento canta-se, compacto no tempo. Quem vai dizer onde termina a música e começa a poesia?"





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