Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 15 de abril de 2013

Entrevista João Bosco e Aldir Blanc - 2003 (2ª Parte)

" - A parceria de vocês não era uma obviedade. Aldir tinha uma porção de parceiros do Movimento Artístico Universitário (MAU). João compunha com o Vinícius. Qual foi a primeira impressão que um teve do outro?
Blanc - A gente procurava um parceiro, aquele cara que eu pudesse dizer 'posso escrever de uma forma que nunca escrevi antes'. E João também sentiu algo assim: 'Esse cara pode botar em palavras o que eu não sei colocar'. Eu escrevia muitas cartas para João em Ouro Preto, falando de como a parceria poderia se desenhar. A parceria não é, ao contrário do que as pessoas pensam, uma espécie de explosão intuitiva. A gente se correspondeu, conversou, armou as coisas muito pessoais para ela acontecer.
 - E o apoio de Tom Jobim, que escreve a contracapa do primeiro disco da dupla?
Bosco - Sim, Tom foi o primeiro cara a dar a maior força.
Blanc - João mostrou músicas na casa de Vinícius, onde estavam Vinícius, Flávio Rangel, Chico Buarque, Tom, e todos foram muito carinhosos.
- Então, vocês tiveram a benção da MPB logo no início?
Bosco - Quem mais deu força foram Vinícius, Tom e Elis.
- Como se aproximaram de Elis?
Bosco - Alguém ligou e ela ficou nos esperando no Teatro da Praia, onde estava em temporada. Mostramos as músicas e ela pegou 'Bala com bala' de cara.
Blanc - A Elis fez uma promessa ali que demonstra bem o caráter dela: 'Vou, neste disco, gravar 'Bala com bala'. No próximo, essas outras três. Eram 'Caça à raposa', 'Caçador de Esmeraldas', 'Cabaré'. Ela prometeu e cumpriu. Faço questão de dizer sempre sobre a Elis que quem quiser falar sobre maus-tratos em pessoas, sobre esporro no garçom, tudo bem, são depoimentos legítimos de quem viu isso. Eu não vi. Sempre fui muito bem tratado por ela. Só vi consideração e carinho.
- O que caracteriza a dupla de 'Bala com bala' até 'O bêbado e a equilibrista', é que as músicas parecem partir antes de ideias muito fortes, como misturar a morte de Chaplin com a anistia...
Blanc - 'O bêbado e a equilibrista' é um bom exemplo, depois de muita conversa. Ele tinha feito uma música pro Chaplin. A gente conversa primeiro sobre isso. Depois sobre a urgência de colocar uma mensagem para os exilados. Depois, conto da dor que eu via do Henfil e dos irmãos sobre o Betinho, que eu não sabia quem era. Era sempre 'o mano, o mano'. A música nasceu após a quinta conversa.
Bosco - A gente sempre esteve muito atento ao que o outro dizia. Lembro-me que contei pro Aldir sobre um Natal, que meu sonho de presente era um revólver de brinquedo. Mas meu pai era um securitário, que, pelo sangue árabe, às vezes trabalhava vendendo coisas. Nesse Natal faltou grana e não ganhei o revólver, e sim um macaco de um palmo de altura, que você dava corda e ele saía tocando tambor. Minha mãe passou horas naquela noite me convencendo de que o macaco era mais interessante que o revólver (risos). Isso foi o 'Falso brilhante'; 'O amor é um falso brilhante no dedo da debutante/O amor é um disparate na mala do mascate/Macacos tocam tambor'.
Blanc - O pai do João foi uma das pessoas que mais gostei na vida... Mas João tem um um negócio ótimo para o parceiro que é poder discutir uma ideia. Com todo respeito aos meus parceiros, depois do João, ou antes, até o ano 5300, isso é impensável. Eles estão voltados profundamente para o trabalho harmônico, melódico. Guinga, por exemplo, é um compositor brilhante, entrega a música pronta e você não pode mexer numa nota. Ao contrário do folclore, o Guinga nunca musicou uma letra minha. Eu letrava nota por nota. Com João nunca houve isso. A gente escreve, combina, muda uma nota ou outra. A gente arredondava coisas. Parceiro combina, ajuda um ao outro.
- Há exemplos disso?
Bosco - 'Nação', a gente tocando o samba lá em casa, pronto, esperando o almoço, e o samba começava: 'Gege, sua sede é dos rios...'. Aí falei para o Aldir se ele não sentia falta de uma cortina para abrir o samba, que estava pronto, batido à máquina, gravado. Mas faltava algo. E aí veio, 'Dorival Caymmi falou pra Oxum'.
Blanc -  Lembrava-me de coisas como 'Pour Butterfly', em cantoras como Ella Fitzgerald, com aquelas loucas introduções, características da época. A gente amava esse troço. Então por que não fazer isso num samba, uma espécie de introdução até cair no tema?
Bosco - Em 'Tiro de misericórdia', todos aqueles orixás vieram quase na hora de entrar no estúdio. Na hora da porta fechar. Tem que ter alguma coisa, e veio aquele hip hop, aquele rap.
Blanc - Aliás, não vou começar a ficar amargo, mas não deram para a gente o crédito do começo do hip hop. Na época não se notou a obsessão que a gente tinha com a violência. A cidade era uma pérola, não tinha violência... cidade maravilhosa. Então, nos chamem de profetas...
(continua)

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