Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

domingo, 20 de janeiro de 2019

Gilberto Gil Fala dos Lisérgicos Anos 70 (International Magazine - 1999) - 1ª Parte

Em 1999 foi lançada uma caixa de CDS com material inédito de Gilberto Gil, chamada Ensaio Geral. Esse material é de sua carreira inicial pela PolyGram, e Gil na ocasião deu uma entrevista ao produtor desse trabalho, Marcelo Fróes, publicado no jornal musical International Magazine - edição 52:
" - Quando você ainda estava na Bahia, você gravou algumas coisas por uma gravadora pequena. Como foi esta fase?
- Teve um compacto duplo pela JS, mas antes eu gravei dois 78 rotações com músicas que inclusive não eram minhas. Eram de um autor de lá, um rapaz muito humilde - um funcionário público com aquela vaidade de querer ver as suas coisas gravadas. Nesta época eu tava trabalhando com Jorge Santos em jingles, começando a me enfronhar com a coisa do estúdio e eu era um cantor disponível - ligado ao staff do estúdio. Ele foi lá e encomendou estas gravações ao Jorge, pois ele queria gravar duas ou três marchinhas de carnaval que ele tinha. E eu gravei, acabei gravando a Marcha do Lacerdinha (N.Ed: na verdade Coça Coça Lacerdinha, lado B de Povo Petroleiro, jingle para a Petrobrás), que é sobre esse bichinho que dá nas árvores e que no final da tarde arde nos olhos. Esse foi o primeiro 78 rotações, depois eu fiz um outro com As Três Baianas, que mais tarde vieram a formar o Quarteto em Cy, aqui. Neste segundo disco eu já gravei uma música minha, que era o Bem Devagar. Felicidade Vem Depois eu não gravei naquela época, embora tenha sido a primeira época a ser composta. Eu acho que o único registro dessa música está num compacto duplo que veio na revista 'O Bondinho' (1972). No compacto duplo da JS entraram Serenata de Teleco-Teco, Maria Tristeza, Vontade de Amar e Meu Luar, Minhas Canções, que depois rendeu um último compacto com Decisão (Amor de Carnaval) e Vem Colombina. Depois disso tudo é que eu vim pra São Paulo e gravei aquele compacto pela RCA com Procissão e Roda.
- Tanto nesse compacto como numa coletânea do 'Festival do Balança', da qual você participou cantando Iemanjá, há créditos que agradecem a cortesia de Discos Mocambo.
- Estranho, porque eu não me lembro e ter sido contratado deles. Aliás, mesmo com Jorge Santos em Salvador eu não tinha contrato. Casa compacto que fiz com ele foi um negócio. Saiu errado então, porque nessa ocasião eu estava contratado pela RCA.
- E a ida pra Philips? Você sentiu muitas diferenças nessas passagens, já que gravou inicialmente compactos num estúdio pequeno em Salvador, depois foi gravar outro compacto numa grande gravadora em São Paulo e, depois, finalmente um álbum no Rio de Janeiro?
- Foi logo em seguida, já pra fazer o disco 'Louvação'. Já havia diferenças notáveis, pois em Salvador era tudo gravado diretamente no acetato. Gravávamos com músicos disponíveis, na Bahia não havia gravadora com banda própria. Era músicos locais; Orlando, por exemplo, era um baixista que tocava tanto na sinfônica quanto em orquestras locais. Logo depois, quando gravei o compacto duplo, nós já gravamos num gravador de fita de 2 canais... mas as condições ainda eram muito precárias. O estúdio era pequeno e improvisado, mas era o único que existia na cidade. Foi feito especificamente para gravar jingles e pequenos spots de rádio.
com Gal
- Você fez muitos jingles? 
- Fiz alguns, uns seis ou sete. O Jorge Santos deve ter sim, ele tem... das Lojas Cruzeiro, dos Calçados Calma e da Polígono Filmes. O estúdio era preparado pra isso. Quando ele começou a gravar esses discos, eu me lembro que o primeiro disco do qual participei foi a gravação do Mestre Bimba, que era o grande mestre da capoeira local. O Jorge resolveu fazer um disco de capoeira, com os toques e os cânticos do Mestre Bimba, e nós fomos gravar com um pequeno gravador portátil lá na Amaralina, onde ele tinha uma academia. Depois é que vieram os meus discos, mas as condições eram muitos precárias. Então, quando eu cheguei em São Paulo, esse primeiro compacto - gravado sob a direção de Carlos Castilho, que fez os arranjos e dirigiu o estúdio - já foi num estúdio da Paula Freitas. Era um estúdio de 4 canais, profissional e com tratamento acústico e dimensões maiores. Bethânia tinha feito um LP, mas tanto eu como Gal e Caetano só fizemos compactos. Só gravei duas músicas na RCA, além daquela versão ao vivo de Iemanjá que está no disco do festival.
- Você teve o privilégio de gravar como Gilberto Gil desde o começo, enquanto muitos grandes nomes começaram gravando como crooner ou sob um pseudônimo qualquer.
- É verdade, mas eu comecei como Gilberto Moreira nos primeiros discos de 78 rpm. O EP já foi de Gilberto Gil. (...) Mas, enfim, minha ida para a Philips já foi em função do estouro da Bethânia, da empreitada do Teatro de Arena - que fez o 'Arena Conta a Bahia', onde nos apresentamos todos juntos e onde despontamos para o público paulista. Aí, já tínhamos os compactos da RCA como referência de intérpretes e compositores. Éramos promessas de gente promissora e aí a Philips, que estava começando um trabalho de formação de novo cast com João Araújo, trouxe Caetano, Gal e eu. Quando Caetano voltou de Londres, Bethânia foi também pra Philips depois de alguns discos pela  Odeon.
Quem produziu o seu primeiro disco?
- Olha, eu lembro que os arranjos foram feitos pelo Dori Caymmi e pelo Carlos Monteiro de Souza, que era um maestro muito produtivo e solicitado naquela época. Bruno Ferreira, filho de Abel Ferreira, hoje mudou de nome e recentemente dirigia a Orquestra Sinfônica da Paraíba, foi o violonista e também fez alguns arranjos. Acho que João Mello, uma espécie de produtor da casa, produziu esse disco. Ele também produzia Jorge Ben e outros projetos.
- Você lançou inicialmente um compacto no final de 1966 - Ensaio Geral, com Minha Senhora no lado B. Só no ano seguinte saiu o álbum  'Louvação'.
- Minha Senhora foi uma música do Festival Internacional da Canção, numa gravação da Gal com arranjos de Francis Hime. Eu sinceramente nem me lembro de ter feito esse compacto antes do LP, nem tampouco esta gravação minha de Minha Senhora no lado B.
- Quando seu álbum já estava estourado, inclusive com as novas versões de Procissão e Roda, você conheceu os Mutantes. Como foi seu primeiro contato? 
- Eu os conheci exatamente quando estava procurando elementos para montar a apresentação do Domingo no Parque no festival. Eu tinha conhecido o Rogério Duprat, que já tinha feito suas primeiras gravações de vanguarda com seu próprio grupo. Ele já era um nome que tinha despontado nessa área de vanguarda paulista e participava de um programa na Bandeirantes, que era comandado pelo Ronnie Von. Nesse programa se apresentavam os Mutantes e o Rogério Duprat tinha uma participação qualquer. Eu o tinha conhecido através do Augusto de Campos e os Mutantes já existiam. Rogério é que me indicou Rita, Arnaldo e Serginho. O episódio foi engraçado, porque a música já estava feita e classificada... e então tinha que pensar na montagem do número. Eu havia gravado uma demo de voz e violão e mandado pra lá, então eu tinha que não só gravar direito como também apresentar a música no festival. E, para apresentar no festival, eu tive que montar alguma coisa e então pensei primeiro em utilizar o Quarteto Novo, que tinha se apresentado com o Edu Lobo em Disparada*. Era um grupo com Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Téo de Barros e Airto Moreira. Eu pensei nesse quarteto pra fazer comigo Domingo no Parque e um dia fui falar com eles. Airto e Hermeto estavam no Canja, que é um instituto de música que existia em São Paulo e que fora criado pelos irmãos Godoy, do Zimbo Trio. Fui lá falar com eles e disse que queria que eles fizessem comigo, só que com uns elementos novos... já que eu estava com os Beatles na cabeça, né?

* Há um engano nessa resposta. Quem se apresentou cantando Disparada, de Geraldo Vandré, com o Quarteto Novo foi Jair Rodrigues e não Edu Lobo

Continua

Nenhum comentário:

Postar um comentário