Palavras Domesticadas

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sábado, 26 de janeiro de 2019

50 Anos da Bossa Nova - O Globo (2008)

1958 é considerado o ano zero da criação da Bossa Nova. Aquelas constantes reuniões de músicos, cantores e compositores que deram uma nova cara ao samba, primeiramente de forma despretensiosa e espontânea acabaram ganhando uma importância e penetração que nem se imaginava a princípio, e o resto é história. Em 2008 o movimento completava 50 anos, e muito se falou e comemorou a data, da mesma forma como no ano passado os seus 60 anos foram lembrados, como acontece com todas as datas redondas. Na edição de 06/04/08 o jornal O Globo trazia uma matéria sobre aquele festejado cinquentenário, em matéria assinada por Leonardo Lichote:
" Abril de 1958. João Gilberto apresenta, discretamente, na voz bossa velha de Elizeth Cardoso, a bossa nova. 'Chega de Saudade', de Tom e Vinícius, primeira faixa do Lado A de 'Canção do Amor Demais'.
'No dia em que a bossa nova inventou o Brasil/ No dia em que a Bossa Nova pariu o Brasil/ Teve que fazer direito' (Tom Zé).
Teve que fazer direito. E fez. 'Nos salvou na dimensão da eternidade', escreveu outro tropicalista, Caetano Veloso (tropicalistas, tradutores tortos da bossa nova). Salvação que veio pela genialidade que sintetiza séculos de ensinamentos da música tonal (a história da Humanidade) e a sofisticação rítmica de nossos batuques (a história da Nação); pela revolução formal que desaguou na moderna MPB dos anos 60; pelo fato de abrir os ouvidos do mundo para a música brasileira. Tudo isso é sublime e é, merecidamente, celebrado hoje em cada acorde de CD ou DVD ou show em tributo aos 50 anos.
Já em 1968 (parabéns pra você, 10 anos), Caetano olhava com acidez e carinho para a bossa nova em 'Saudosismo' e avisava que 'acordes dissonantes se integraram aos sons dos imbecis', denunciando um casamento que continua vivo. E que tem filhos espalhados por aí. Normal. O futuro inevitável de símbolos revolucionários é virar souvenir, bibelô de sala com decoração eclética. Mas talvez a bossa nova seja o fenômeno artístico que carrega de forma mais gritante essa contradição incômoda: ao mesmo tempo em que é arte divina, perfeição helênica, tudo aquilo escrito em linhas acima, é trilha sonora impessoal de hall de hotel, bom-gosto-baixos-teores, tão bela quanto inócua, certas vezes beirando o cafona, mas sem força até mesmo pra ser kitsch.
João Gilberto
A música que refundou a nação há cinco décadas é, hoje, fundo de pensão - em entrevista ao Globo (publicada em 10/07/2007), Roberto Menescal dizia que a bossa nova atualmente é sua (justa, vale lembrar) aposentadoria. 'Estou colhendo frutos que plantei', explicou. Musicalmente, continua coisa-mais-linda-mais-cheia-de-graça. Mas a questão não é só musical. Em 1958 (Belini levanta a Jules Rimet, Juscelino 50 anos em 5, Cinema Novo em gestação, etc) a bossa nova era o Brasil - ou uma possibilidade de. Hoje (desde há muito) ela não mais nos explica. Não é a bossa nova que vemos do outro lado do espelho.
Morreu? Não, mas sua porção musicalmente mais pulsante é a que se move no subterrâneo, contaminando o pop de Pato Fu (Fernanda Takai disse ao Globo ter sido influenciada por bossa nova indiretamente via Suzanne Vega) e a escola Lulu Santos (que recentemente falou que sua música é marcada pela riqueza harmônica do que chamou de 'tradição musical brasileira) a pós-MPB de Adriana Calcanhoto, o novo samba velho da Lapa, o samba pós-mangue de Recife, a gafieira-século XXI da Orquestra Imperial, as cases de DJs como Marcelinho da Lua, as surpresas do +2, as mãos esquerdas de Camelo e Amarante, o rap de Marcelo D2 e Instituto.
Tom Jobim, João Gilberto e Stan Getz
Já na mão dos guardiões da bossa nova, novos ou antigos, quase sempre ela repousa plácida e sem viço. por culpa deles ou não, ela traz embutida em si um conceito superficial de sofisticação (o tripé uísque-charuto-bossa), quando originalmente refletia um conceito sofisticado da superfície - 'João Gilberto não subestima a sensibilidade do povo', escreveu Tom Jobim na contracapa do LP 'Chega de Saudade', lançado em 1959.
João Gilberto 'sujou' a mão da Rádio Nacional, de Zé da Zilda, de Orlando Silva para entregar 'Bim Bom' à brisa de Ipanema. Ali, a bossa nova cresceu olhando para fora (ouvidos atentos ao jazz) e para a frente (o futuro promissor que se anunciava). Curiosamente, hoje olha para dentro (desconsidera a música internacional contemporânea, amparada em paradoxal discurso nacionalista) e para trás (o futuro daquele passado, que não veio). Sustenta-se não mais sobre o vigor do novo que carrega no sobrenome, e sim sobre sua história e sobre os ienes do mercado nipônico. Enfim, o que se propõe aqui é outra forma de celebrar o cinquentenário. Lembrar que a bossa não foi o fim (perfeição atingida e sacramentada), mas o começo. "

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