Palavras Domesticadas

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quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

10 Anos Sem Raul Seixas - Jornal do Brasil (1999) - 2ª Parte

" O cantor Sérgio Vid (do Vid & Sangue Azul) é um dos que defende a seriedade do lado espiritualista de Raul. 'Como Vovó Já Dizia' tem uma sequência de frases que, superficialmente, parecem porra-louquice. Mas está tudo ali', diz. Junto com o Barão, ele canta as pérolas espirituais do compositor: How Could I Know, Metamorfose Ambulante e Como Vovó ('Quem não tem colírio usa óculos escuros...'), música que em 1974 deixou o baixista Arnaldo Brandão apavorado. 'Pensei que a gente fosse acabar em cana. Naquela época, comunista e maconheiro eram tudo a mesma coisa.' Um que, sim, passou maus bocados por causa de Raul (indiretamente, porém) foi Luís Carlos Carlini. Mito do rock paulistano (que só havia tocado com Raul uma vez, numa festa na casa de Nelson Motta, em 1975), ele foi convidado para tocar num show do Panela do Diabo, no Olympia, em Sampa. O local estava lotado, com fãs querendo invadir o show. Nome anunciado, ele se dirigia ao palco quando foi abordado por um segurança. 'Eu vou tocar', disse. 'Você vai tocar é para as suas negas', retrucou o corpulento, que o pôs pra fora da casa. 'Quando vi, estava na calçada com o pipoqueiro', lembra, entre gargalhadas. Depois, estaria em vários Baús.
Kika Seixas, viúva e administradora do espólio de Raul, comemora a quantidade de amigos que conseguiu reunir neste Baú. 'Raul nunca teve medo de morrer, só de ser esquecido', conta. Por sugestão da filha que teve com o roqueiro, Vivian, ela incluiu na escalação os rappers Marcelo D2 e BNegão, que cantam Metrô Linha 743 e Mosca na Sopa acompanhados pela banda de Gustavo, Arnaldo, Carlini, Serra e Johnny Boy (ou melhor, João Chaves antes do batismo de Raul). Completam a noite a banda carioca Baia & Rock Boys ('Os jovens que assimilaram a linguagem de Raul', na opinião de Kika) e Bull & Bill e Zé Ramalho. Ao fim, todos voltam ao palco para cantar Gita. "
o texto de Silvio Essinger termina aqui, mas a matéria ainda traz outro texto, escrito por Jomari França, e intitulado 'Curtos e circuitos":
" Uma vez no estúdio da Som Livre em Botafogo, Raul recebeu jornalistas para um bate papo de lançamento do LP Metrô Linha 743. Foi bastante informal, ele encostado no balcão de um barzinho que tinha no estúdio com o copo de bebida (não me lembro qual) perto falando das músicas do disco quando de repente o copo quebrou em vários pedaços espontaneamente, sem cair ou ser tocado por quem quer que seja. Raul riu, soltou um 'ah, isso sempre acontece' e chamou o garçom para remover os escombros.
Era mais um efeito da aura de bruxo do mago da Sociedade Alternativa, estudioso das ciências ocultas e uma das figuras mais carismáticas que já passaram pela Música Popular Brasileira. Certa vez, eu, ele e seu partner Paulo Coelho passamos uma noite no apartamento em que Raul morava em Copacabana falando sobre os estudos de ocultismo que faziam, especialmente os ensinamentos do bruxo escocês Aleister Crowley, de onde tiraram os fundamentos do manifesto da sociedade alternativa, aquele que começava com o 'faz o que tu queres, há de ser tudo da lei...'
Na ocasião, Raul me mostrou e manipulou várias vezes uma coleção de livros com a obra completa de Crowley e, na despedida, ele fez questão de me emprestar um volume para que eu tivesse tempo de me enfronhar um pouco na obra do mestre, decifrando os textos num inglês arcaico, mas me faltou a crença fervorosa de Raul e nunca mergulhei a fundo no livro. E nunca me faltou curiosidade, principalmente porque ele tinha outro discípulo ilustre, Jimmy Page, o guitarrista do Led Zeppelin, que chegou a morar na casa que foi de Crowley na Escócia. O livro ficou anos comigo e eu sempre naquele conflito interno do devolvo ou não devolvo, porque se tornou precioso para mim ter algo dele, mas um dia, num dos nossos encontros, levei o volume de volta. Ele deu pulos de alegria porque pensou que tinha perdido o livro. Claro que na hora bateu um arrependimento...
Assisti a shows memoráveis de Raul no Circo Voador, no Parque Laje, em produções sob a batuta da agitadora cultural Maria Juçá, e no Noites Cariocas. Juçá era (é) outra apaixonada por Raul. Ficávamos os dois horas em sua companhia curtindo a figura, sempre rica em tiradas inesperadas e inteligentes. Raul era um cara que tinha sua própria leitura do mundo, interpretando tudo que via e lia dentro de sua cosmologia.
Teve momentos muito alegres e muito tristes também. Como da vez em que ele não conseguiu fazer um show no Parque Laje por conta de um curto-circuito mental combinado com muitas doses de álcool. Ou da vez em que o encontrei numa vernissage exalando um odor terrível de éter, que estava cheirando direto. Ele me recebeu com um carinho enorme, como sempre fazia, e fiquei o resto da noite acompanhando-o até aterrissá-lo, são e salvo, em casa. "

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