Palavras Domesticadas

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terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Gilberto Gil Fala dos Lisérgicos Anos 70 (International Magazine - 1999) - 3ª Parte

"- Você então começou a gravar um segundo disco em inglês, que você largou para trás quando voltou para o Brasil em 1972.
- Pois é, eu não me lembro nada desse disco. Eu tava dando prosseguimento natural, da mesma forma como Caetano fez 'Transa' em seguida a seu primeiro disco em inglês. Eu fiz umas quatro ou cinco músicas mas parei, não só porque estava voltando como também porque não tinha material para complementar. Eu não tinha orientação suficientemente clara para prosseguir, mas estava sendo produzido por Ralph Mace. Tutty Moreno e Chris Bonnett estavam comigo, mas eu já estava numa outra fase. Eu já não estava tão na coisa de ficar em casa compondo, eu já estava solto e já era amigo de Jim Capaldi.
- Não deu tempo de gravar nada com esses amigos como Jim Capaldi?
- Não deu tempo, provavelmente nesse momento teria rolado alguma coisa. Eu saía muito, gostava de tocar bongô nas jam sessions do Revolution e do Speakeasy. Eu tocava com o guitarrista do King Crimson e também com Dave Gilmour, do Pink Floyd, além de Jim Capaldi e Alan White - que era da Plastic Ono Band; ele trabalhou com Lennon e Yoko, antes de ir pro Yes. Terry Reed, um R&B branco da tradição de Alexis Korner, e John Mayall também. Minha turma era essa, então eu já não tava muito no projeto pessoal. Mas aí, quando esses desdobramentos de relacionamentos iam começar, é que eu vim embora. Quando eu ia começar a realmente conhecer outras pessoas, através do Jim Capaldi e do David, eu voltei.
- O que fez você voltar? Você não gostava de lá?
- Ah, mas a perspectiva de voltar era grande.
- Você não pensava em dividir seu tempo, indo e voltando?
- Não, eu vim e reassumi. Viajar era mais difícil, era preciso que houvesse os interesses manifestados claramente a partir de lá. Eu voltei e me reintegrei completamente à vida brasileira e à expectativa de carreira no Brasil. Eu só fui retomar o interesse internacional em 1978, quando fui pra Montreux.
- 'Expresso 2222' foi gravado com muitas músicas que você trouxe de Londres, num clima de quase ao vivo.
- Ele e Eu já tinha vindo de lá, Expresso 2222 também. Aqui eu me reencontrei com a música nordestina e é por isso que coloquei Pipoca Moderna no começo do disco. Sai do Sereno também, eu tirei essa de um disco do Abdias. Aí eu retomei a paixão pela música nordestina.
- Mas você voltou com uma banda e começou a fazer shows, bem antes de gravar o LP 'Expresso 2222'. A impressão é de que foi gravado praticamente ao vivo...
- É, mas ele foi todo montado no estúdio. Ele foi concebido e ensaiado no estúdio, muito embora eu tivesse feito apresentações com o grupo. Bruce Henry era o baixista, Tutty Moreno era o baterista e o Perna Fróes era o tecladista etc. Brand New Dream talvez fosse do repertório daquele segundo disco em inglês, mas ficou só no show. Quando eu fui fazer o 'Expresso 2222' com a produção do Roberto Menescal, nós fizemos tudo no estúdio. Por exemplo, o Bruce não se adaptou com o samba e o Lanny, que era o guitarrista, pegou o contrabaixo e gravou Chiclete com Banana. Lanny toca baixo porque Bruce ainda não estava suficientemente integrado.


Houve algum choque, quando você entrou no estúdio com toda essa carga inglesa com alguém como Roberto Menescal?
- Pra ele talvez tenha havido... (rindo) Pra mim não, eu tava com a minha turma. O Perna tinha se integrado também e o Lanny, que nós tínhamos deixado aqui, havia sido reintegrado ao grupo aqui. Só tinha vindo de lá comigo, afinal o Bruce também e estreamos em Recife, no Teatro do Parque. Em seguida, nós gravamos o LP com produção do Menescal.
- Algum tempo depois você começou a gravar um novo álbum, inicialmente com Só Quero um Xodó. A música era de Dominguinhos e o próprio entrou em estúdio contigo. De onde surgiu esta aproximação?
- Eu conheci Dominguinhos quando ele foi com Gal para uma apresentação no Midem, no início de 1973. Foi ali que que ele me apresentou o Xodó e nós apresentamos a música lá, daquele jeito mesmo. Eu me lembro que nós voltamos e logo entramos em estúdio, para gravá-la para um disco meu. Originalmente a música tinha sido gravada pela Anastácia, mas ela era um xote bem regionalista. Comigo ela já ganhou uma levada de blues e acabou virando  um xote-reggae, né? Eu cheguei a gravá-la de uma forma bem reggae no show no show do Tuca, lançado no disco ao vivo do ano seguinte, mas ele acabou só tendo músicas inéditas. Ali a ideia era gravar um disco inédito mesmo.
- É o disco menos comercial de sua carreira.
- É, mas teve Lugar Comum, João Sabino, Menina Goiaba e Herói das Estrelas, além daquela música do Caetano, Sim Foi Você. Esse disco merecia ser remontado, porque é bem exíguo em sua concepção de LP e o CD comporta muito mais tempo.
- Em Menina Goiaba você faz referência ao disco que nunca foi feito. Numa entrevista sua naquela época, você fala que está fazendo muitos compactos mas não queria fazer um LP.
- É, eu não fiz um LP e é por isso que fiz aquele disco ao vivo no final de 1974. Porque eu deveria ter feito um pouco depois do 'Expresso 2222', mas eu não finalizei. Aquelas gravações que ficaram pra trás dão um disco inédito.
- Mas você acabou indo trabalhar com João Donato, produzindo um disco em que na verdade você chega a cantar. É o LP 'Lugar Comum'...
- É verdade, eu não só toco e canto algumas coisas como também compus quatro ou cinco músicas. Eu canto A Bruxa de Mentira. É, eu conheci o João Donato através da Miúcha - que tinha voltado dos Estados Unidos depois de sua separação de João Gilberto. Nós ficamos amigos e Donato era muito amigo dela. Nós nos conhecemos e, enfim, fizemos de imediato uma amizade e começamos a conviver. Passávamos noites e noites por aí, juntos na casa de Caetano e na casa de amigos dele. E aí, pronto, fizemos muitas coisas através dos anos... inclusive A Paz.
- E Jorge Mautner, como você conheceu?
- Eu o conheci em Londres, ele tinha ido de Nova Iorque para Londres... especificamente para nos visitar e nos conhecer. Ele tinha nos conhecido muito rapidamente em São Paulo.
- É, ele gravou alguns compactos na RCA na mesma época que você, Caetano e Gal.
- É, com a história da Bomba Atômica, né? Nós sabíamos da existência dele, porque ele foi para os Estados Unidos. Quando nós fomos pra Londres, ele acabou indo visitar-nos em 1970. Ele fez o filme 'O Demiurgo' lá conosco, é um filme completo. Eu faço papel de um deus e toco alguma coisa. Nós acabamos fazendo muitas coisas juntos, inclusive no disco inglês, três músicas são parcerias nossas.
- De repente, você fez mais músicas com Jorge Mautner e com João Donato do que com Caetano.
-  Ah sim, com Caetano não chega a dez. Ele se refere a isso como autonomia, como a independência dos dois projetos. Há uma autosuficiência, então ele supre suas próprias necessidades como músico e eu supro as minhas como letrista. Só raramente nós nos encontramos...
- E quanto ao trabalho com Jorge Ben naquele lendário álbum duplo?
- Nós estávamos ali, éramos ambos da PolyGram na época, tínhamos uma admiração mútua muito forte... Já tínhamos cantado Jazz Potatoes juntos no 'Phono 73', né? Enfim, a gente já vinha com essa ideia de fazer alguma coisa juntos. Aí foi a oportunidade, incentivados pelo André Midani... nós gravamos ao vivo no estúdio. Fizemos coisas curiosíssimas, eu me lembro por exemplo da gravação de Taj Mahal. Nós tínhamos ensaiado Morre o Burro Fica o Homem e o Jorge começou a tocar a introdução e eu achei que a gente ia gravar Morre o Burro. Mas aí ele começou Taj Mahal... (rindo) e foi tudo gravado já pensando num disco. Nós realmente estávamos fazendo um disco já ali. No Glorioso São Cristóvão, ele achou um santinho no estúdio e foi fazendo a música. Jurubeba foi a mesma coisa, eu bebia jurubeba e levei uma garrafinha pro estúdio. era um estimulante que eu gostava de tomar, aquilo era um hábito da Bahia. Aí, brincando no estúdio com 'juru jurubeba', a música foi surgindo. E as outras todas também, foi tudo improvisado.
- Como foi 'Refazenda'? Desde o início ele já tinha toda aquela concepção, com orquestra e tal?
- Já, foi conceitual sim. Depois do 'Expresso 2222', aquele meu primeiro disco conceitual. Aliás, daí em diante todos os meus discos passaram a ser conceituais. Eles continuaram a ser conceituais, como tinha sido o disco do Tropicalismo.
- Phil Collins diz que disco conceitual ficou perdido no tempo e que ninguém mais faz isso.
- Ah, mas nós continuamos fazendo. Caetano faz, 'Estrangeiro' é e 'Circuladô é. 'Parabolicamará' é, 'Eterno Rei Mu'...
- 'Refavela' também?
- Sim, imagina... 'Refavela' é o segundo da trilogia iniciada com 'Refazenda'. Depois veio o terceiro com 'Realce', pois o 'Refestança' foi só uma brincadeira no meio de tudo... porque a Rita quis brincar com o 're'. Todos três têm seus manifestos. 'Refazenda' é o manifesto do recuo, da retaguarda e da volta; 'Refavela' é o que revela, fala e vê a coisa da música negra; e 'Realce' fecha a trilogia, com um salário mínimo de cintilância. Foi o terceiro movimento, mas quando eu fiz o 'Refazenda' eu não sabia que estava iniciando uma trilogia. Quando eu fui pra África é que apareceu o 'Refavela' e aí eu concluí que depois teria que fazer um terceiro.
- Você nunca pensou num quarto volume?
- Não, porque eu queria uma trilogia. Os volumes ficaram afastados pelo tempo e por outros projetos, como foram os discos dos Doces Bárbaros, o 'Refestança', o 'Antologia do Samba Choro' e o 'Ao Vivo em Montreux'. Foram três discos de estúdio onde eu entrei para fazer três pronunciamentos claros a respeito de certas coisas, portanto aí reside o sentido conceitual de cada um dos três discos. É o conceito do re, que passou por todos os três e que depois, na Warner, nós misturamos os três no 'Re-Sol-Vida'. É a solução, 'resolvida', talvez o quarto volume a que você se referiu. É uma coletânea que mistura o repertório dos três discos, misturados e divididos em 'Re, 'Sol' e 'Vida'. Foram três LPs...
- As músicas do 'Refazenda', disco que você demorou tanta a fazer - já que 'Expresso 2222' é de 1972 -, já vinham sendo trabalhadas?
- Já vinha sim, muito embora eu só tocasse O Rouxinol em shows. Ela é da mesma época de Lugar Comum, eu acho que fiz ambas em Salvador na mesma semana. Eu estava gravando um disco em estúdio mas nunca terminei, depois gravei o 'Refazenda' todo de uma vez. Só aproveitei Essa É pra Tocar no Rádio, que tinha inclusive o Dominguinhos tocando sanfona... na mesma época de Só Quero um Xodó. Mas deixei pra trás todo um trabalho... que, de todo modo, eu quis que fosse feita toda uma coleta de todo esse material. Mesmo o que não saía todo numa caixa, depois a gente vê o que vai fazer. Na verdade, o material inclui muitos elementos que não são comerciais e que não devem ser encarados como repertório para coletânea. "


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