Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Gilberto Gil Fala dos Lisérgicos Anos 70 (International Magazine - 1999) - 2ª Parte

"- Em momento nenhum você pensou em usar aquele grupo que o Caetano havia utilizado em Alegria Alegria, os Beat Boys?
- Não, Caetano já tinha os Beat Boys com ele e eu queria uma coisa parecida. Na verdade, nesse momento em que eu estava procurando o Quarteto Novo, talvez o Caetano ainda não tivesse encontrado os Beat Boys. Mas já, de todo modo, queríamos - tanto eu quanto ele - um conjunto com abordagem contemporânea e que incluísse aqueles elementos...
- ... mas jamais um conjunto da Jovem Guarda, como Renato e Seus Blue Caps, Incríveis ou Fevers, que eram os grandes grupos da época, né?
- A gente não tinha afinidade com eles. Não era nem questão de afinidade, a gente simplesmente não tinha aproximação. Nós éramos um grupo completamente diferente. Eles trabalhavam com o Roberto, a Jovem Guarda já tinha um status e era uma estrutura. Aquilo era uma redoma, o único da chamada MPB que chegava lá era Jorge Ben. Ele tinha trânsito, porque era da mesma turma que o Roberto aqui na Tijuca. Enfim, nós não entrávamos ali. Saí, quando eu cheguei no Quarteto Novo, falei com o Airto - que era quem liderava o grupo: 'Eu queria fazer, mas eu queria botar umas coisas diferentes... a la George Martin, como no disco dos Beatles'. Aí o Airto foi muito claro, muito enfático no sentido de dizer que não queria nenhum experimentalismo desse tipo. O som deles era um som brasileiro, nordestino, com viola. Era um som violado, era aquilo que depois veio a ser o Quinteto Violado. Aí eu disse: 'Bom, se vocês não querem, tudo bem'. Fiquei até um pouco decepcionado, porque eu queria muito e gostava muito deles. Eles eram a coisa mais nova na música popular, como um conjunto de quatro craques e tal. Eu tive que procurar e aí, nesse ínterim, relatando ao Rogério Duprat sobre minha intenção de fazer uma coisa 'george martiana', 'beatleniana' e tal, com aqueles elementos que me encantavam naquele momento, ele me disse: 'Ah, tem um grupo que trabalha comigo lá na Bandeirantes, no programa do Ronnie Von, e que é perfeito pra isso. Se eles quiserem, vai ser bacana. Eu vou falar com eles'. Ele foi, falou com eles, marcou um encontro e nós nos encontramos e daí veio Domingo no Parque.
- E aí eles acabaram tocando em várias faixas de seu próximo disco, já em 1968. 
- Eles começaram a me acompanhar em shows e com isso gravaram várias faixas comigo.
- Você foi responsável pela ida deles pra Polydor?
Um pouco, um pouco. Foi através de nós que eles vieram. Primeiro nós gravamos o disco 'Tropicália', depois é que fizemos os LPs individuais meu e do Caetano.
com os Mutantes
- Como foi a gravação deste disco? As faixas de cada um foram gravadas individualmente, para depois serem reunidas num disco, ou vocês realmente gravaram tudo junto?
- Olha, não muito num clima de festa não. Eu tive muitas dificuldades na realização daquele LP, porque eu recusava muitos arranjos do Rogério Duprat. Eu tava numa dificuldade muito grande, porque eu tinha muito entusiasmo por todas aquelas investidas inovadoras mas era muito inseguro com aquilo tudo. Primeiro, porque eu não tinha domínio técnico de linguagem de instrumentação. Eu tocava mal e rudemente meu violão, na linha da Bossa Nova e do regionalismo baiano-nordestino - vindo da tradição 'caymmiana'.
Seria como ir ao 'Sgt. Pepper' sem passar pelo 'Help'?
- Exatamente, sem saber nada. Eu nunca tinha pegado uma guitarra elétrica, eu nunca havia convivido com grupos de rock. Nada de nada de nada, então o Rogério Duprat, os Mutantes e os Beat Boys é que eram os únicos elementos com os quais nós contávamos - especialmente o Rogério Duprat, que, muito entusiasmado com a coisa dos Beatles e com o experimentalismo do George Martin, encontrou um mínimo denominador comum. Nós admirávamos muito e queríamos trabalhar com aquilo, então ele é que era o grande entusiasta. Tanto é que os arranjos de 'Tropicália' são dele, todas as músicas têm um arranjo orquestral.
- Você fez Miserte Nóbis e Geleia Geral pensando na concepção do disco ou você já as tinha prontas?
- Não, aquilo tudo já foi dito sob a égide de um manifesto tropicalista que Caetano e Capinam... e Torquato Neto escreveram, onde já se publicavam os princípios básicos daquele conjunto de atitudes e daquela empreitada artística nossas. E daí, essas composições já foram feitas em função desse conceito.
- Questão de Ordem escapou de 'Tropicália' e também de seu disco tropicalista.
- Essa foi uma música do festival seguinte e ficou só no compacto mesmo porque foi feito para aquele festival. O 'Tropicália' saiu antes, aí eu já estou com os Beat Boys e o Caetano com os Mutantes em É Proibido Proibir. Houve uma inversão. Eu não sei se estou com o grupo completo, mas pelo menos 3 dos membros gravaram comigo - Tony Osanah, Willy e Marcelo... John, um hippie americano que eu havia acolhido em minha casa, também participou da gravação... tocando percussão numa calota de fusca.
- Pouco depois veio a prisão e com ela, o exílio e a despedida com Aquele Abraço. Você já sabia que teria que partir quando a compôs e gravou?
- Sim, porque eu tinha vindo ao Rio para tratar a minha saída do país com o Segundo Exército. No avião, na volta para Salvador, eu terminei de compor. Comecei na casa de Gal...
- Daquela safra de composições, muita coisa acabou sendo gravada pela Gal: A Coisa Mais Linda Que Existe, Cultura e Civilização e Com Medo Com Pedro. Você também tocava muito nos discos de Gal e de Caetano, exercia muito a função de compositor e músico. 
- Eu era uma espécie de coringa do grupo, né? Mesmo com Bethânia, também, muito depois. Como era tido como o 'músico do grupo', muito embora não saiba exatamente porque - já que meu desenvolvimento ainda não era lá essas coisas.
maestro Rogério Duprat
- Mas o próprio Caetano reconhecia isso, afinal ele demorou muito a tocar em seus shows e em seus discos. No próprio disco dele de 69 você é quem abre, tocando violão naquele 'false start' de Irene. Vocês parecem ter gravado tudo junto naquele início de 1969, antes de partir para o exílio. Tanto o seu disco quanto o dele?
- Sim, nós viajaríamos no dia seguinte... num domingo. Na véspera, nós gravamos Aquele Abraço com produção de Manoel Berenbein. O velho Marçal toca, comandando a bateria. Fizemos isso aqui no Rio e eu me lembro que Wilson das Neves toca, as meninas das Gatas também estão lá. Eu já tinha gravado o resto do disco na Bahia, em bases de voz e violão registradas no estúdio JS. Nós estávamos em prisão domiciliar em Salvador e Rogério Duprat foi pra lá e nós gravamos tudo só com voz e  violão. O estúdio JS só tinha os mesmos dois canais que eu havia deixado pra trás em 63. Os dois LPs, o do Caetano e o meu. As fitas foram gravadas lá e o Rogério as trouxe, para que fosse feita a complementação em playback. O conjunto de baixo, guitarra, bateria foi adicionado aqui, juntamente com os metais do Chiquinho de Morais. Eu não pude acompanhar esse trabalho, mas gravei Aquele Abraço pra fechar o disco.
- Você gravou demos de Cultura e Civilização e Com Medo com Pedro nesse mesmo dia, além de uma versão do Hino do Bahia em dueto com Caetano Veloso.
- Pois é, eu nem sei porque Cultura e Civilização não entrou no disco. Eu fiz lá em Salvador, nesse período do confinamento.
- Como foi a experiência em Londres? Você começou a compor em inglês, mas já tinha domínio da língua quando foi pra lá?
- Não, eu não dominava nada. Eu tinha os rudimentos do ginásio. E tinha tido algum contato assim mais regular com leituras em inglês, muito dificultosas, na época da faculdade. Muito da literatura disponível era em inglês, então eu tinha que ler com o auxílio de um dicionário. Conseguia ler, mesmo que mal, mas não falava nada. Lá em Londres nós fomos para a escola, Caetano também foi estudar inglês. Tínhamos a expectativa de ficar lá e não sabíamos por quanto tempo, então tínhamos que começar a nos preparar para ficar.
- Vocês viviam de que? De royalties de disco?
- Sim, de royalties.
- Então naquela época disco dava dinheiro?

- Dava pouco... e a gente vivia com pouco. Vivíamos basicamente com isso, mas depois de um ano nós começamos a tocar - com a perspectiva de gravar lá, que surgiu através dos contatos da própria Philips daqui. Ralph Mace, que veio a ser o produtor dos nossos discos lá, ele tinha relacionamento com a Philips, e ficou sabendo que nós estávamos em Londres e que éramos dotados de um talento e de um propósito artístico. Enfim, foi recomendado a ele que cuidasse  da possibilidade de nos aproveitar em gravações. Ele foi, tomou contato conosco e arrumou o selo Famous Music e se incumbiu da  produção. Foi aí que eu mandei chamar o Tutty Moreno o Caetano mandou chamar o Momó, Moacyr Albuquerque, que havia sido músico nosso nas últimas realizações lá na Bahia... antes de virmos para São Paulo. E aí Caetano fez aquele primeiro disco com Tutty Moreno e um baixista.
Gil e Caetano em Londres
- O que aconteceu com seu disco?
- Foi lançado em Londres e também nos Estados Unidos, ocasião em que fui aos Estados Unidos pela primeira vez. Não aconteceu nada de excepcional, mas os discos nos introduziram na área dos experts. Na verdade, no meu caso o disco serviu para que eu me chegasse com o conjunto de meu repertório. Eu fui convidado a fazer shows em Nova Yorque, a propósito do lançamento do disco, e eu cantei parte do repertório do disco mas principalmente coisas que não estavam  no disco e que eu trazia do Brasil. Eu tive a oportunidade de fazer um programa de televisão chamado Camera 3, que ainda existe até hoje na TV americana. Esse programa teve certa repercussão e eu me apresentei num teatro off Broadway, com uma ambientação produzida pelo Hélio Oiticica. Esse disco abriu caminho pra mim na Europa também, porque eu me lembro que fui me apresentar na Alemanha e na França. Ele saiu em vários países. "

continua


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