Palavras Domesticadas

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domingo, 6 de março de 2016

Alceu Valença O Leque Moleque de Pernambuco - Revista Manchete (1987) - 1ª Parte

Envolvido atualmente com o lançamento de seu primeiro longa-metragem, A Luneta do Tempo, Alceu Valença prova mais uma vez que é um artista multimídia e inquieto, sempre disposto a se envolver em diferentes manifestações de arte. Cada disco que Alceu lançou ao longo de sua carreira carrega a marca de sua poesia e musicalidade, circulando entre a música regional, o rock e a MPB tradicional com maestria e talento. Assim foi com o disco Leque Moleque, que Alceu lançou em 1987, que ele havia acabado de lançar, e foi matéria da revista Manchete, em uma série chamada "Um cantor e seu canto". Escrita pelo jornalista Paulo Fradique, segue abaixo a primeira parte da matéria:
" 'Em São Bento do Una eu nasci. Olinda é o delírio, onde tenho meus amores. Em Recife bebi a negritude, aprendi a vida de obrigações'. Com palavras de poeta, Alceu Valença abre os braços, solta a voz, conta seus segredos, 'coisas de cantadores, violeiros, aboiadores'. Tudo muito natural: Rita Lee é São Paulo, Caetano Veloso é Bahia, Tom Jobim é Rio, Alceu é Pernambuco. Só que cantando o Nordeste inteiro, com voz de mundo. Aos 13 anos de careira - iniciada em 74 -, com passagens pelo Rio e Europa, 11 LPs gravados, Alceu se diz todo nesta segunda reportagem de Manchete sobre os cantores e seu canto. 'Eu estou inteiro no meu novo LP, Leque Moleque', avisa. Leia - e abóie com ele pelas ruas de Olinda.
Como Alceu Valença definiria Alceu Valença? 'Eu sou uma pessoa que tem um estilo e esse estilo é múltiplo. São várias caras de um mesmo personagem. Agora estou lançando o disco Leque Moleque, que é muito aberto e mostra diversos caminhos meus. O artista está dentro de mim. Eu não me divido em público. A minha arte atinge cada vez mais gente, cada vez um número maior de pessoas. Eu sei diferenciar muito bem o artista Alceu Valença daquele mito que as pessoas construíram à minha revelia. Aí eu sei, naturlmente, que não tenho essas forças todas que pensam que eu tenho. O mito é um super-homem. Mas eu sei muito bem delinear o limite até onde sou eu e a partir de onde começa o Alceu criação popular. O grande perigo é você viver a fantasia que as pessoas costuraram pra você. Minha carreira demorou muito para acontecer. Eu comecei a fazer música muito naturalmente. Nunca pensei em ser artista. Ser cantor, gravar disco... eu pensava que ia seguir uma carreira como outra qualquer, de advogado, como cheguei a me formar. O início da minha carreira foi muito espontâneo. Quando fui ao Rio, depois de formado, eu estava em busca de emprego.' 
O que se passou em tua vinda entre São Bento do Una e Recife, Olinda? 'Eu nasci em são Bento do Una. Lá eu tenho uma base sertaneja. Os cocos, emboladas, aboios, dessas coisas todas. Em Recife eu cheguei com nove anos de idade. Aqui eu bebi  a negritude da cultura pernambucana, coisa que no agreste não tem muito. Aqui é bem mais negro. Os maracatus, os blocos de frevo, os caboclinhos que passavam em frente de minha casa, na Rua dos Palmares. Eu me deparei com esse outro aspecto da cultura do mesmo estado. É o meu tripé de sustentação: São Bento do Una, Recife e  Olinda. Em cada uma dessas cidades eu vivi uma fase de formação. Em Recife eu ouvi muito rádio, calipsos, rock, Elvis. Olinda é o delírio poético. É  fantasia. É em Olinda que eu tenho os meus amores. Ainda em Recife eu aprendi a vida de obrigações, colégio, faculdade, oportunidade em que tomei gosto por literatura. Antes teve o curso clássico no Colégio Nóbrega, quando comecei a me interessar por teatro, artes plásticas. Eu teria sido pintor não fosse a falta de habilidade. Fui atraído pela política estudantil, pela boemia e pelos bares. Tudo isto me deu um lastro humanista. Uma abertura para muita coisa. Um leque aberto de informações. E essas coisas todas entraram em minha formação de artista. Eu poderia citar também como influências dessa fase a poesia de Ascenço Ferreira, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond, Fernando Pessoa, Joaquim Cardozo. Disso tudo eu tirei um produto meu, original. Há em mim uma musicalidade natural. Em música popular, a letra quase sempre não resiste sem a música, o conjunto é uma coisa muito bonita, aí você tira a música e não tem mais nada. A minha letra eu tenho certeza que resiste. Por exemplo; 'Quando eu olho para o mar/dentro do mar vejo o rio/quando olho para o rio/dentro do rio vejo a chuva/quando olho para a chuva é como se olhasse as nuvens/quando eu olho para as nuvens é como se olhasse o mar/quando eu olho para mim, dentro de mim tem você/quando olho pra você por dentro sinto saudade/quando eu olho pra saudade meus olhos vão desaguando e é como um rio passando que não corresse pro mar.' É o ciclo das águas, né? Pelo fato de eu ter sido muito antes poeta, influenciado pela literatura. Aliás, eu não falei ainda que escrevi poemas e remetia para os jornais locais. Eu escrevia e  publicava no Jornal do Commercio. Então, o que aconteceu? Antes de eu fazer uma música, que dei pra Bethânia (não sei se ela vai gravar...), que acho muito bonita. É uma música mas que é também poesia. Ela diz assim: 'Haverá sempre entre nós esse digo não digo/esse 't' de tensão, esse ar de amor ressentido/um recado falado, um bilhete guardado, um segredo/um carinho no lábio, um desejo guardado, um azedo./Qualquer coisa no ar/esse desassossego/no metrô da saudade seremos fiéis passageiros/um agosto molhado/um dezembro passado/um janeiro/cessará finalmente entre nós esse minto não minto/esse 'i' de ilusão, 't' de tensão infinito.' Eu tenho certeza de que isso é poesia. É um traço das coisas que eu li e me influenciaram.'

(continua)

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