Palavras Domesticadas

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domingo, 27 de março de 2016

Entrevista com Chico Buarque e Edu Lobo - Revista Qualis (1993) - 1ª Parte

A parceria de Chico Buarque com Edu Lobo é uma das mais férteis da MPB. Sempre formada para compor canções para musicais de teatro, esse trabalho em parceria produziu alguns verdadeiros clássicos, que atestam a genialidade desses dois autores, surgidos nos festivais dos anos 60, e que consolidaram seus trabalho através dos anos. Em 1993 a revista Qualis fez uma boa entrevista com os dois músicos. Concedida a Celson Masson e Jean-Yves de Neufville, a matéria de capa é intitulada "Palavras e  notas", e segue abaixo:
"1993 tem tudo para ser o ano em que  Chico Buarque vai virar a mesa. Após uma entressafra musical que o levou a enveredar pela literatura e escrever seu primeiro romance, 'Estorvo', o compositor dá sinais de que vai voltar a produzir e cantar canções. Entre seus projetos está um disco que ele deve gravar na França, outro que ele ainda está devendo à gravadora BMG, e ainda a montagem de um novo show. O ponto de partida desta virada se deu em março com o lançamento em CD do álbum 'O Grande Circo Místico', um musical composto em 82 em parceria com Edu Lobo. Na ocasião, Chico e Edu concederam à Qualis uma entrevista exclusiva. Aproveitamos essa rara oportunidade para entender melhor a arte desses mestres da música popular brasileira, e fazer com eles um balanço entre passado, presente e futuro.
Qualis - As suas obras respectivas, que já cobrem um período de quase 28 anos, tomaram inúmeras formas, passando por diversos veículos e formatos - canções, discos, shows, livros, teatro ('Ópera do Malandro'), cinema, musicais, trilhas para seriados de TV (Edu: 'Ra-Tim-Bum), etc. O que motivou essa busca constante de diversificação?
Chico Buarque - Começamos numa época em que havia esse intercâmbio entre as formas de arte, talvez mais do que hoje. O pessoal do cinema, do teatro, da música, das artes plásticas, andava sempre nos mesmos lugares. A gente sempre se encontrava, trocava ideias. Foi um período muito rico, na década de 60. Eu mesmo comecei assim, fazendo música de encomenda para teatro.
Edu Lobo - Essa coisa de trabalhar por encomenda sempre funcionou muito bem, tanto para mim quanto para o Chico. Funciona como um desafio, um estímulo, que obriga a fazer. O ato de criação de maneira geral é muito solitário. Então quando você tem mais pessoas para dividir, ou mais pessoas se cobrando, um assunto específico a partir do qual você tem que compor, trabalhar e pensar, isso funciona. Tem gente que odeia. No nosso caso sempre funcionou como estímulo. Dá um certo arrependimento depois de assinar o contrato. Você fica pensando: 'O que eu fiz agora, não vai dar tempo'. Esse 'não vai dar tempo' deixa você o tempo todo ligado - são sei lá quantas músicas para compor em três meses, e sempre acaba dando certo.
Qualis - Chico, você então compôs aquela música de encomenda para uma peça de teatro em São Paulo, entregou e acharam que não servia. Você acabou virando a madrugada e entregou outra música, 'Tem Mais Samba'.
Edu - Era uma encomenda de Luiz Vergueiro, que depois me levou para conhecer o Guarnieri e fazer 'Arena Canta Zumbi'.
Chico - Era uma peça chamada 'O Balanço da Bossa', que tinha na primeira parte o Taiguara, Toquinho e Ivete.
Além dessa coisa do trabalho, do estímulo da encomenda, acho que havia naquela época um interesse mais amplo por assuntos de ordem geral. A gente discutia cinema, todo mundo ia no Paissandu, via os filmes do Glauber... Havia uma efervescência cultural muito grande. O pessoal não se juntava apenas para falar de música ou fazer só música. Falava de tudo. Hoje eu tenho a impressão de que a coisa está mais compartimentada. Até porque as pessoas estão se engajando profissionalmente com mais consciência do que nós naquele tempo. No começo era uma coisa meio amadora. Para nós a música era um quebra-galho, um hobby, uma brincadeira. A gente não tinha a visão profissional que um garoto que está começando agora já tem. Hoje a indústria está mais presente, muito mais ansiosa, precisando de gente nova, que apresente coisas novas o tempo todo. Na época era bem diferente. Havia mais tempo.
Capa da revista
Qualis - O trabalho de criação muda muito quando você passa da composição para teatro ou balé, para uma simples canção do disco?
Edu - Dependendo do assunto, pode mudar. Você pode ser obrigado a trabalhar num tipo de música que nunca experimentou. O teatro tem a vantagem de obrigar a compor coisas que você jamais teria pensado em fazer, se não fosse uma determinada cena que eventualmente obriga a fazer um tango ou um blues, por exemplo.
Qualis - Chico, há um aspecto literário nas letras que você escreve que também pode ser detectado no seu romance, 'Estorvo', em que você parece usar cada palavra como se fosse letra de canção. São abordagens semelhantes ou distintas?
Chico - Elas são distintas porque as palavras numa canção eu escolho a partir da música. É  uma parceria. A palavra não aparece antes da música e sim, depois, mesmo quando eu faço uma música sozinho. Nunca escrevi uma letra de música antes da música existir. O processo do romance é diferente. Trata-se de escrever uma letra de música, só que sem a música. Na época em que eu estava escrevendo, ficava repetindo frases em voz alta para minha filha e ela dizia: 'você está escrevendo um livro como se fosse letra de música'.
O rigor com as palavras é o mesmo, mas é diferente porque a escolha das palavras numa música é uma, e sem a música é outra. Você vai escolher a musicalidade própria da palavra, a palavra que tem maior autonomia. Você opta entre uma palavra e outra, entre sinônimos, numa música por um motivo, sem música por outro.
Muitas vezes a palavra aparece antes mesmo do sentido da letra. Às vezes uma letra bonita começa por uma palavra, uma palavra que é puxada pela melodia. É muito comum os parceiros cantarem a música, e quase que existe uma onomatopeia no que eles cantam. Cada som muda uma palavra, essa palavra é a chave para o verso, que pode ser a chave para a letra toda.
Qualis - Como é compor em dupla?
Edu - Cada parceiro tem um jeito diferente de trabalhar. Eu tenho parceiros letristas que também fazem música, e eles são diferentes daqueles que não fazem música. O parceiro que faz música compreende exatamente a necessidade da música, sabe que a palavra não pode vir com a acentuação fora do tempo para não cantar 'pálavra'. Com o Vinicius tinha essa facilidade, como eu tenho com o Chico, porque são pessoas que fazem música. O Capinan, por exemplo, que é mais poeta do que músico, a 'trip' dele é um pouco diferente, até a maneira de trabalhar. Ele costumava mandar muita coisa pronta para musicar. O que também estimula.
Qualis - Mas isso também não dá mais trabalho?
Edu - Eu sou obrigado a fazer uma música que tenha uma estrutura musical interessante, que tenha a ver com aquela letra e, em certos casos, o ritmo do poema não ajuda a música. Você tem que começar a cortar, porque não pode fazer frases musicais seguidas de tamanhos diferentes. O poeta não tem muito esse tipo de preocupação. Às vezes o texto é lindíssimo e você não consegue musicar. Existem poetas que eu não pensaria em musicar. João Cabral é muito mais difícil de musicar do que o Bandeira, por exemplo.
Qualis - A estrutura musical requer uma linguagem escrita específica...
Edu - Poesia não é letra. Na letra tem poesia, mas a poesia nem sempre pode ser musicada. Às vezes ela é absolutamente impossível de ser musicada. A não ser que você faça uma coisa meio atonal, absolutamente solta, usando palavras soltas e com a estrutura menos rígida, supostamente mais moderna, mas que na realidade não vai ter o equilíbrio que uma canção pede.
Qualis - Nos anos 60 vocês deviam se conhecer, mas só começaram a compor em parceria em 81. A primeira música foi 'Moto Perpétuo', e vieram três musicais: 'O Grande Circo Místico', 'O Corsário do Rei', peça de Augusto Boal, e 'Dança da Lua Nova'. Por que essa parceria não surgiu antes?
Chico - Edu tinha outras parcerias. Eu, na verdade, tinha poucas, no começo. Esse trabalho de fazer letra para outro parceiro, passei a desenvolver mais no fim dos anos 70. No começo fiz algumas coisas com o Tom, mas poucas. Depois, veio o trabalho com Edu, mais sólido porque foi realizado em torno  de projetos, que a gente discutia muito antes de começar. Mas demorei, custei a aprender. No começo eu só sabia fazer música comigo mesmo."
(continua)

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