Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 15 de junho de 2015

Um Guia para o Clube da Esquina - Jonal do Disco (1980) - 1ª Parte

Em fevereiro de 1980 o Jornal do Disco, que vinha encartado na revista SomTrês, trazia uma matéria sobre os discos lançados até então pelos artistas mineiros que formavam o movimento que ficou conhecido como Clube da Esquina. A resenha, assinada pela jornalista Ana Maria Bahiana, comentava discos do Som Imaginário, Beto Guedes, Tavinho Moura, Wagner Tiso e Toninho Horta. Ela preferiu deixar de fora os discos do grande mentor do movimento, Milton Nascimento, que é um caso à parte. Antes do resumo dos álbuns, a matéria traz um texto introdutório:
"No princípio não havia nem Milton - havia Minas, só, esse celeiro misterioso de minério e músicos, todos ali enrustidos nas montanhas como gemas raras, temendo e querendo o tal eixo Sul, devorador e ditador de de modas. O primeiro a pegar o trem, contam, foi Wagner Tiso, esse sagitariano errante. Veio a reboque de outro mineiro ilustre, mas já perdido na memória, Pacífico Mascarenhas ('era o Milton daquela época'). E ficou no Rio. Escreveu ao amigo Milton, ainda embrenhado nos bares de Belo Horizonte: 'Pode vir'. Milton respondeu: 'Volte, rapaz. Teu lugar é aqui'.
Mas aí foi a 'Travessia', e o trem desatou nos trilhos. Os músicos, os compositores, os poetas -  e é importantíssimo lembrar a atuação dessa fala mineira no linguajar musical brasileiro, Fernando Brant e Márcio Borges primeiro, Murilo Antunes muito depois - vieram em ondas sucessivas e seguras, incrustando-se nas dobras da ampla voz de Milton. Em 72, um nome foi cristalizado: Clube da Esquina. Eram eles.
Aqui, um guia do que eles - fora Milton, é claro - fizeram, nestes dez anos de pacífica e amorável invasão mineira de nossas praias e planaltos. Estão catalogados aqui, em ordem cronológica - a contribuição deste elenco de tímidas estrelas às obras de sua voz maior, e aos esforços uns dos outros, não caberia sequer neste jornal."
Abaixo, a resenha dos álbuns:
"Som Imaginário/ Som Imaginário (EMI/Odeon, 1970) - Foi a primeira grande audácia, o primeiro passo de autonomia. Wagner tinha juntado alguns amigos de antigas batalhas pela noite do Rio - Luiz Alves, baixo; Robertinho, bateria - e estes tinham trazido mais alguns - Zé Rodrix, órgão; Frederiko, o Fredera, guitarra; Tavito, guitarra base; Naná, percussão - para acompanhar  Milton no famoso show 'de peito nu', no Opinião do Rio. Foi o começo da virada heavy, o 'Para Lennon e McCartney' e o grupo, improvisadamente batizado Som Imaginário, foi fundamental - Wagner com a cabeça feita de Beatles, Fredera alucinado nas ondas de Jethro Tull e Hendrix, Zé Rodrix treinando o bom gosto pop. Findo o show, o grupo tomou corpo próprio e ousou o primeiro LP, puxado por um sucesso do FIC de 69, 'Feira Moderna' (de Beto Guedes e Fernando Brant). É uma das melhores faixas deste primeiro Som Imaginário, onde Rodrix dá o tom, e onde está a deliciosa 'Sábado' e a hilariante 'Nepal' ('Tudo é um barato/ no Nepal tudo é muito barato'), ambas de Fredera, mini hits do primeiro verão desbundado do Rio.
Som Imaginário/Som Imaginário (EMI/Odeon, 1971) - Na segunda encarnação do Som - Wagner, Luiz, Robertinho, Tavito, Frederyko - é Fredera quem predomina, com sua guitarra agudíssima, lancinante e psicótica. Álbum de delírios ingênuos e hilariantes - 'Salvação pela Macrobiótica' (de Fredera), 'Gogó/ O alívio Rococó' (Wagner e Fredera), 'Cenouras' (Fredera) - retrato exato daquele momento impreciso, onde a salvação era o salto fora, macrobiótica, guerrilha ou estrada. Uma faixa anuncia o Wagner que haveria de vir: 'A Nova Estrela' (uma parceria com Fredera), ambiciosa e intrincada - pobre se ouvida hoje, gravada em quatro canais - mas repleta de bons presságios.
 Lô Borges/Lô Borges (EMI- Odeon, 1972) - O maldito 'disco do tênis). Contam que vendeu uma ninharia de cópias, mas era assim que as coisas aconteciam em 1972 - quem gostava não tinha grana ou não estava nem aí. Salomão Borges, o Lô, era vizinho de Milton no famoso edifício Levy, de Belzonte, irmão do poeta Márcio, já parceiro de Bituca. Um rasgo de sorte e profunda amizade colocou precocemente Lô no circuito das estrelas - recém-saído do ginásio, capitaneando um grupinho semi-amador, o Fio da Navalha, ele se via co-autor de um disco, Clube da Esquina, ao lado de, se não um astro, pelo menos um nome respeitado - Milton. E, para culminar, vinha, aquela cara zangada e arredia com que Lô enfrenta o público e o trânsito do Rio na contracapa, o sumiço de sete anos que se seguiu e o clima punk avant-la-lettre do álbum, todo cambaio, com Toninho Horta tocando uma guitarra insuportável. Bonito? Estranho. Lô e Beto Guedes são irmãos de sangue, e se a voz de Beto oscila como a de um anjo, a de Lô sugere um diabo em férias, mais escura que luminosa. Há uma canção inesquecível - 'Canção Postal', com Ronaldo Bastos - e polaroides do delírio, exatas: 'Faça Seu Jogo' ('jogue sua vida na estrada/ como quem não quer nada') e 'Não se Apague Esta Noite' ('eu preciso dormir em paz/ como o touro e a rosa'), ambas com Márcio Borges."
(continua)


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