Palavras Domesticadas

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sábado, 13 de junho de 2015

Falando de Rock, Jazz e Drogas - Revista Ele Ela (3ª Parte)

'Janis enchia esse vazio com a bebida. Seus admiradores, como nas oferendas que os povos primitivos faziam aos seus deuses zangados, depositavam sobre o palco onde ela se apresentava dezenas de garrafas - e ela nunca consumia menos de um litro por apresentação. Costumava cantar equilibrando entre os seios uma garrafinha do seu bourbon preferido, Southern Comfort. No Brasil, Janis nunca bebeu menos de duas garrafas por dia, uma de  Creme de Ovos, outra de Fogo Paulista, tudo pelo gargalo. Ela mesma explicava essa fúria de autodestruição: 'Bicho, prefiro viver dez anos no maior barato do que setenta sentadinha na cadeira da vovó. Prefiro me gastar toda em um ano, dois, enquanto durar. Que me importa o futuro? Os jovens que vêm me ouvir querem que eu me entregue toda a eles, de uma só vez, não de gota em gota. Muita gente se choca com o meu estilo emotivo, mas há milhares de jovens felizes de ver uma mulher que não tem medo de ser mulher em público, feminina, de deixar cair os véus, de se oferecer. Eu canto com minha voz, com o corpo, com o sexo. Eu canto toda.' Janis Joplin morreu sozinha num motel de Los Angeles, de uma dose excessiva de heroína. Poucos dias antes, o guitarrista e cantor Jimi Hendrix morria num hotel de Londres sufocado no seu próprio vômito após tomar nove pílulas barbitúricas. Hendrix, que confessara tomar 'de tudo um pouco, maconha, haxixe, LSD, cocaína - menos heroína', descrevera na música Purple Haze o misto de 'céu e inferno' que é a experiência do LSD: 'Névoa púrpura no meu cérebro/ ultimamente as coisas não parecem mais as mesmas/ Eu ando meio esquisito, mas não sei porque/ Dá licença, me deixa beijar o céu?/ Névoa púrpura por toda parte/ Não sei se estou subindo ou descendo/ Se estou feliz ou na miséria// Seja o que for, aquela garota (a droga) me enfeitiçou/ Preciso de ajuda/ Me socorra, baby, me socorra, baby.'
Hendrix
Além de instrumento para escapar a uma realidade hostil, a drogas serviam para Jimi Hendrix também como um meio de percepção. Como muitos outros gênios criadores que se consumiram nas chamas do seu próprio talento, ele jogava sua última cartada na música: 'A música é como as ondas do oceano. Ninguém pode apanhar com a mão uma onda perfeita e levar para casa. A música está em movimento o tempo todo. É a maior força eletrificando toda a Terra. Música e movimento são parte da raça humana.'
Hendrix faz eco às palavras de outro desesperado da canção, Ray Charles: 'Soul é o modo de entrar numa canção e fazer a canção entrar na gente. Fazer dela uma parte de nós mesmos, mas uma parte real, concreta, quase tangível. É uma força, uma força elétrica ou coisa parecida.'
Essa mesma maldição metafísica perseguia o lendário cornetista Bix Beiderbecke, artista alcoólatra típico da Era do Jazz cantada por Scott Fitzgerald. Bix morreu em 1931 aos 28 anos e, segundo seu colega de orquestra Jimmy McPartland, 'uma das razões por que bebia tanto é que era um perfeccionista. Queria fazer mais com a música do que qualquer homem seria capaz, e por isso sofria uma frustração imensa.'
Essa forma de frustração já foi catalogada por um psicólogo, o inglês  Murray Kornfeld, como complexo de Orfeu.
O mais famoso músico da mitologia grega, Orfeu ganhou uma lira de presente de Apolo e aprendeu a tocar com as musas. Tirava do seu instrumento sons tão geniais que os animais selvagens caíam sob encanto e as pedras e as árvores mudavam de lugar, acompanhando a sua música. Segundo o Dr. Kornfeld, os que sofrem do complexo de Orfeu acreditam que a música é tudo, que ela possui o poder mágico da comunicação total e é capaz de mudar o mundo, (re) conduzindo o homem a uma condição paradisíaca.
Já o Dr. Arthur Janov, da Califórnia, psicanalista do beatle John Lennon, vê o problema sob um ângulo  diferente: 'Não me consolo com a racionalização de que vivemos numa era de neurose (ou ansiedade) e por isso é de se esperar que todo mundo seja neurótico.' O Dr. Janov pratica a Terapia Primordial, que, como a terapia básica freudiana, procura levar o paciente a revivenciar experiências profundas (primordiais), ou seja, a revivenciar aqueles momentos em que ele considerou a realidade dolorosa demais e, em vez de enfrentá-la refugiou-se no limbo da neurose. A essa condição neurótica o Dr. Janov contrapõe 'um estado de vida bem diferente daquilo que concebemos: uma vida sem tensões, sem defesas, em que cada um de nós atinge a personalidade total e experimenta sensações profundas e unidade interna.' No curso da sua terapia, uma das indicações mais dramáticas de que o Cenário Primordial foi atingido é simbolizada pelo que - inspirado na reação de um paciente - o Dr. Janov chamou o Grito Primordial, lançado quando, antes de começar a cura, o paciente chegou ao fundo do poço. Segundo essa teoria, a geração de Woodstock já vislumbrou, ainda que de relance, essa condição paradisíaca, a Utopia Primordial descrita pelo Dr. Janov. Milhares mesmo, ainda que sob circunstâncias artificiais e de pequena duração, já viveram fisicamente 'dias de paz e amor' nos festivais e nas comunas hippies. Mas na vida prática, na rotina de sobrevivência, são muitos os que se impacientam diante das imensas barreiras econômicas e sociais que os ainda separam da Terra Prometida. Jimi Hendrix foi um desses rebeldes impacientes. Ele quis resgatar 'todas essas pessoas que vivem em colmeias de cimento, sem nenhuma cor, escravizando-se pelo último dólar, apostando e fazendo jogos de guerra'. Na sua concepção do mundo entorpecido, narcotizado, é o homem unidimensional da sociedade repressiva (plastic-man na gíria do rock), e é preciso abrir as portas da percepção, ainda que seja preciso arrombá-las. É preciso libertar os canais sensoriais embotados da raça humana e Hendrix tentou penetrá-los furiosamente com o seu som lírico, frenético, obsessivo. Esse som desesperado e envolvente do rock - não confundir com as trombetas do Apocalipse - se fez ouvir hoje como o Grito Primal de toda uma geração. Nas palavras de Eric Clapton: 'Apelamos para as drogas a fim de libertar nossas mentes e nossa imaginação dos modismos e preconceitos que foram injetados em nós. Nosso problema é universal: como encontrar a paz numa sociedade hostil. Queremos exprimir essa busca através de nossa música, pois ela é a nossa voz mais eloquente' "

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