O compositor e produtor musical Roberto Menescal deu um depoimento à revista Zero nº 14, de 2004, cuja matéria de capa era sobre os 30 anos de ditadura militar. Menescal falou sobre vários assuntos, como Bossa Nova, ditadura e alguns artistas com quem conviveu e trabalhou, tanto como músico, quanto como produtor e diretor de gravadora. Eis a matéria:
Nascimento da Bossa:
"Não dá pra dizer que existe uma data de nascimento da bossa nova, do começo. Existe uma chegada por vários lados, ao mesmo tempo. O universo todo deu condições para que aquilo acontecesse, e justamente naquela hora.
Nós éramos um grupinho de Copacabana que usava a praia em todas as possibilidades que ela oferecia. A gente jogava futebol, vôlei, namorava, se encontrava. O nosso escritório era a praia. O que favoreceu muito foi o fato de a casa da Nara Leão ser em frente a ela, e era um apartamento muito bom para a época.
Além disso, seus pais, muito liberais, preferiam que os amigos fossem a sua casa do que saíssem. Essas condições todas fizeram com que os encontros fossem ali, na beira de Copacabana, o que proporcionou uma influência do mar e da natureza na música muito grande.
Era uma turma esportista e isso fez com que mudasse um pouco o foco do assunto das letras na época. A geração anterior à nossa era a que se encontrava nos bares depois do trabalho - com essa dinâmica, as letras falavam de perda, de tristeza, 'ela me deixou', o assunto se focava principalmente nisso.
E nossa visão da vida era de natureza, esportista, o mar, as casas de verão, os barquinhos... Acho que calhou de produzirmos uma música que a juventude que habitava ou que estava chegando ao Rio de Janeiro se identificava e precisava - era época também do boom das universidades. Eles procuravam uma nova forma de estudo, de vida e, naturalmente, de uma nova forma de expressão por meio da música. A bossa nova caiu como uma luva.
Por isso os primeiros shows foram nas universidades, e apoiado por elas. Nós tivemos tudo aberto pra chegar."
Capa da revista Zero nº 14 |
"Nós somos de uma geração depois da deles, e quando você tem 18 anos, oito anos de diferença é bastante. O Tom era um cara que trafegava no que a gente chamava de moderna música brasileira. Ele fazia parte desse grupo com os intérpretes, e nós estávamos à procura dessa tal música nossa, à procura da batida, do violão. A gente não sabia tocar um samba e até hoje eu não sei tocar (risos). Assim, buscávamos nossa maneira própria de tocar samba. Mas, ao mesmo tempo ouvíamos muito jazz, porque era a única música de que a gente gostava mesmo.
Recebíamos informação, influência do jazz, por meio dos musicais da Metro, do cinema, e vivia fuxicando discos. Não tínhamos aqui os grandes concertos do gênero, nossos ídolos eram todos de fora. Então, procurávamos imitá-los, mas sempre ouvindo as novidades do Jobim e de outros compositores daqui.
Até que Jobim começou a ter notícias da meninada que estava procurando fazer uma coisa na mesma direção que ele. A gente não o encontrava, mas foi acontecendo uma aproximação natural. Num apartamento que o Carlinhos Lyra e eu alugávamos, criamos uma academia de violão, e ensinávamos quem quisesse aprender. Aí o Jobim bateu lá um dia, final de tarde, em que eu estava dando aulas para uma menina, e disse: 'Menescal?'. Eu, emocionado, né?, aquela figura na minha frente. Aí ele me chamou para gravar a trilha do Orfeu, larguei a menina na aula e fui embora com o violão.
Esse foi um acontecimento muito importante não só pra mim, mas pra toda a nossa turma. Primeiro porque foi um contato musical de fato, e depois porque foi um elo que começou a ser criado. Ele queria pagar um cachê, e eu achava um sacrilégio ele me pagar - eu é que queria pagar um cachê pra ele, por trabalhar ao seu lado. Então, ele me levou pra jantar e disse: 'Então eu te pago um jantar', e me deu a dica:
- 'O que você está fazendo?'
- 'Ah, eu estou estudando pro vestibular de Arquitetura.'
- 'Mas você não quer ser músico? Então estuda música. É tão simples!'
E eu saí dali decidido, parei de estudar. Só que a partir do momento em que você para de estudar, tem que seguir uma profissão. E a turma que estava em volta - por isso te digo que foi importante - levantou aquela bandeira: 'Vamos ser músicos, profissionais.'
Ao mesmo tempo, eu estava na minha casa em uma festa - Bodas de Prata dos meus pais - e aquela situação toda formal, eu estava atendendo a porta, recebendo os presentes, as pessoas, quando toca a campainha. Era um cara em manga de camisa. Pensei que fosse entregar alguma coisa, e ele perguntou: 'Você tem um violão?'
Respondi: 'Mas o que é? Está tendo uma festa aqui.'
E ele: 'Mas não tem um cantinho?'
Sem saber quem era, levei-o pro meu quarto, e quando ele deu o primeiro toque eu disse: 'Você é o João Gilberto?'. E ele: 'Como você sabe?'
- 'Pela sua música, eu disse (risos)
Aí saí com ele e voltei três dias depois, após mostrar aquela peça pros meus amigos. Então você vê que as coisas chegaram juntas, foi muito fácil o começo."
(continua)
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