Em 1986 foi lançado no Brasil a tradução do livro Tarântula, de Bob Dylan, pela Editora Brasiliense. Na ocasião, o informativo Primeiro Toque, publicado pela Editora Brasiliense, trouxe um texto de divulgação para o livro, escrito pelo historiador Nicolau Sevcenko. Abaixo, a transcrição:
"Numa de suas entrevistas mais polêmicas, perguntado pelo repórter do Greenwich Village Voice se ele acreditava ter desempenhado um papel de líder do desenvolvimento da cultura pop, Dylan respondeu: 'Eu espero que não'. Esta resposta estourou como uma verdadeira bomba de estilhaços em meio à legião de fãs, que sempre o tiveram na conta de profeta e guia. Eles se sentiram perplexos, paralisados entre a incredulidade e a decepção. Seria apenas mais uma ironia do autor de Lily, Rosemary e o Valete de Copas, ou será que o autor de Blowing in the Wind, o hino radical do underground politizado dos anos 60, havia mergulhado no mais torpe cinismo? Ou será que tudo não passava de mais uma sacada genial do impenetrável nonsense que sempre foi uma das marcas registradas de seus poemas? É muito provável que tudo isso seja verdade ao mesmo tempo. Mas o que é mais verdade ainda, é que Dylan não estava mentindo.
Não que Dylan, o mais notável poeta da cultura pop, não tenha tido uma influência decisiva sobre todos os seus artistas e representantes mais significativos. Isso é indiscutível, todos o sabem e admitem. O que é muito mais difícil de aceitar, é que ele sempre se sentiu muito pouco à vontade nesse papel central e preferiu a todo momento atacar e destruir a imagem que faziam dele, do que relaxar e gozar, confortavelmente acomodado ao papel de condutor do povo eleito, constituído pela juventude rebelde do mundo inteiro. Isso explica as relações sempre tensas e intempestivas que ele mantém com a indústria cultural, com a imprensa e mesmo com seu próprio e imenso público. Coisa rara no universo dos grandes astros do pop: quase nada se sabe de sua vida particular, ele evita a mídia como a peste - ele é inevitavelmente um mito, porque sua própria vida é um mistério.
Já em 1965, na contracapa do magnífico 'Bringing it All Back Home', Dylan abria o coração e, coisa pouco comum, falava claramente dos incômodos de sua posição. 'Eu aceito o caos. Mas não estou certo se ele me aceita. (...) O sucesso não significa absolutamente nada... Eu não quero ser Bach, Mozart, Tolstói, Joe Hill, Gertrude Stein ou James Dean, eles estão mortos. Os grandes livros já foram escritos. Os grandes dizeres já foram ditos. Eu só pretendo esboçar uma imagem do que acontece por aqui às vezes. Embora eu próprio não entenda muito bem o que é que está acontecendo. Eu só sei que todos nós vamos morrer um dia e que nenhuma morte jamais fez o mundo parar. (...) Uma música é algo que pode caminhar pelos seus próprios pés. Eu sou chamado de compositor. Um poema é uma pessoa nua... Algumas pessoas dizem que sou um poeta.'
Um grande, um prodigioso poeta, seria necessário acrescentar. E por isso mesmo um homem indefinível, plural, paradoxal. Ele diz que só fugiu de casa, aos 18 anos, porque as minas da sua cidade fecharam e não havia alternativas. Mas continuou fugindo sempre, mudando constantemente, fez disso um estilo de vida. Nunca passou fome ou sofreu as dificuldades dramáticas dos folk singers, como Woody Guthrie, seu mestre. Aos 22 anos já era um sucesso consagrado e assinava contratos milionários. Mas suas músicas só cantam boêmios, marginais, prostitutas, vagabundos e rebeldes, gente fracassada. Não foi ele quem inventou a canção de protesto, tradição do folk, mas ele provocou a politização irreversível da cultura pop. Não foi ele que introduziu as guitarras elétricas no folk, mas depois dele ambos não se separam mais. Quando todos esperavam que empunhasse a bandeira libertária de Woodstock em 69, ele foi cantar com os reacionários e racistas que controlavam a indústria da música country, em Nashville. Foi outro choque para todos, mas depois dele, os racistas e reacionários perderam aquele monopólio. Quando todos esperavam dele mais um hino contra a guerra do Vietnã, ele compunha baladas de amor e refletia sobre complexas experiências existenciais. Quando lhe cobraram lirismo, ele ofereceu misticismo. Quando lhe exaltaram a fé, ele exibiu sarcasmo e cinismo. Neutralizou sua melancolia com um humor e sua audácia com um anseio de plenitude. Em meio a tudo isso, uma poética centrada no absurdo e no silêncio, das palavras e da vida. Definitivamente: Dylan não pertence a ninguém, para a sorte dele e a nossa. 'Está tudo certo, mamãe, eu só estou sangrando...' "
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