Em 1972 Hermeto Pascoal já era um músico respeitado, porém ainda não era tão conhecido. Sua música já chamava a atenção de quem se ligava em sons vanguardistas, livre das amarras do mercado. A entrevista abaixo, publicada na edição 169 do jornal O Pasquim (setembro de 1972), foi publicada antes de sua polêmica apresentação no FIC (Festival Internacional da Canção) daquele ano, quando ao tentar apresentar sua composição "Serearei", ao lado da cantora Alaíde Costa, foi proibido de executar sua música, por ter levado ao palco dois porcos, que ajudariam na execução da composição. Na entrevista Hermeto fala de seus planos para o festival, dentre outras coisas, sem imaginar que sua proposta musical não seria entendida pela organização do festival. Leia a entrevista:
"Se Hermeto Pascoal tem cara folclórica, cabelos compridos, barba grande, olhos claros e pequenos, isso parece, afinal, ser o menos importante no homem. Na verdade, o que importa, além da sua excepcional técnica de músico 'por vocação', é que talvez mesmo por ser um músico tão completo, ele não terá tido tempo até agora de se preocupar com outras coisas 'além da música, do som'.
Claro, talvez esse detalhe (que fica bem claro na entrevista) nem represente tanta novidade para quem lembra bem dos motivos que levaram a música brasileira, em 1962/1964, da Bossa Nova à volta às raízes: a vergonha o pai (o jazz) fez com que a MPB renegasse, então, a filha daquela relação - e nesta atitude estavam Carlos Lyra/influência do jazz, Edu Lobo/Nordeste, Baden e Vinícius/Berimbau, Vendré/caipira sem novidades, Quarteto Novo e o nosso Hermeto.
Mas então o que temos aí é o Hermeto de volta - 10 anos depois: ingênuo alienado ou reacionário convicto? Virá a ser um dia, como Eumir Deodato é, neste momento, hóspede de Baby Doc no 'Paraíso' do Haiti?
Se você gosta muito do músico Hermeto, feche os olhos. Não leia a entrevista. Não veja mais nada. Escute apenas o som. O som - isso eu concordo - é maravilhoso. (Julio Hungria)
O Pasquim - Hermeto ou Hermêto?
Hermeto - Hermeto.
O Pasquim - Ô Hermeto, eu estive estudando aí o material que já se publicou a teu respeito, a entrevista no Bondinho etc., e eu li uma coisa que disseram de você: Hermeto voltou pra dar uma última oportunidade ao Brasil. Muito bem: você está voltando, você voltou, e agora você participa do FIC. Você aha que isso é uma última oportunidade pra dar ao Brasil?
Hermeto - Olha, eu não sei o que vai acontecer no FIC. Porque a turma que vai se apresentar lá... justamente, não são meus conhecidos mesmo, não é? Eu conheço poucos, entende? Mas a minha preocupação mesmo no festival é fazer uma boa apresentação, com meu conjunto, e eu espero muito o público aceitar bem o meu trabalho. Eu fiz o arranjo pra toda a orquestra da Globo... São 44 músicos mais o coral do Severino, que é um excelente coral, muito bom. É só isso.
O Pasquim - Você acha que o artista deve participar efetivamente do ambiente social dele no sentido de modificar ou melhorar esse ambiente?
Hermeto - Não... Eu acho que o cara que é músico tem que se preocupar só com a música... A música, mais nada. Som. É isso. Se ele perder um segundo que seja com outras coisas - com dinheiro, com namorada, com tudo - ele não consegue chegar onde quer.
O Pasquim - ?
Hermeto - Olha, você vê, no Brasil. Os caras falam que a música, coisa e tal... Agora, o que acontece é que 95% dos músicos brasileiros, dos compositores brasileiros, todos eles são muito influenciados, não é? E são muito complexados. Eles se inferiorizam. Qualquer coisa que vem lá de fora, eles já dizem assim: oh... Às vezes, aqui no Brasil, tem um cara que faz muito mais bem feito, muito melhor. Você vê, no Brasil tem músico fazendo rock, dizendo que toca rock...
O Pasquim - Tem gente, no entanto, que acha o contrário. Acha que complexados - complexo de inferioridade - são aqueles medrosos das influências, avessos às influências, o medo do subdesenvolvido relativamente ao desenvolvido etc.
Hermeto - Olha, desculpe, só eles pensarem que aqui é subdesenvolvido ou não é, só o tempo que eles perdem para pensar isso aí, eles já se esqueceram da outra parte do negócio. Esqueceram de se preocupar com a música.
O Pasquim - Escuta, vamos mudar de rumo - quem é que trouxe você pro Rio? Foi o Sivuca?
Hermeto - Não, foi o José Neto. Meu irmão. O pianista. Eu vim pra cá pra tocar no regional da Rádio Mauá. Eu vim tocando acordeom.
O Pasquim - Escuta, como é que foi essa troca de instrumentos? Primeiro o pandeiro, depois o acordeom, adiante a flauta.
Hermeto - É, e teve cavaquinho também...
O Pasquim - Mas explica: como é que você chegou à flauta? Do acordeom para a flauta como é que foi?
Hermeto - Olha, eu comecei a tocar flauta porque eu comecei a tocar clavineta, sabe? Aquele acordeonzinho de boca...
O Pasquim - Sei, entendi tudo.
Hermeto - Pois é, aí eu comecei a tocar e aí eu descobri um som...
O Pasquim - Você deve a sua forma toda de música a muito estudo ou...
Hermeto - Olha, eu acho que devo tudo à vocação de músico. A vocação em primeiro lugar; em segundo lugar o estudo. Estudo sozinho mesmo, aliás, Eu nunca tive professor...
O Pasquim - É? Escuta, então como é que você estuda? Você tem algum método? Estuda um certo número de horas por dia? Como é que é?
Hermeto - Não, eu estudo quando dá vontade. Na hora em que eu tenho vontade. Eu nunca digo assim antes: 'Eu vou agora estudar!' Se eu disser isso antes, aí eu não faço nada.
O Pasquim - Bom, ô Hermeto, vamos lá encerrando. Uma última perguntinha: censura. Como é que você olha para o problema da censura em arte? Você acha a censura um mal necessário?
Hermeto - Olha, a censura é bem capacitada, bem preparada, gente com preparo, entende? Aí eu acho legal. "
Obs: Essa última resposta chega a ser surpreendente, partindo de um artista, de um criador. Ironicamente, pouco tempo depois dessa entrevista, o próprio Hermeto (como citei acima) foi vítima de uma censura, quando não pôde realizar sua apresentação no FIC, tendo, inclusive, o microfone da cantora Alaíde Costa, que interpretaria sua música, sido desligado.
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