Em 1982 Djavan já havia firmado seu nome na seleta galeria dos grandes compositores da MPB. Seu disco "Luz", lançado um ano antes, fez um grande sucesso, e suas músicas traziam um toque de originalidade bem pessoal. Em outubro daquele ano Djavan foi matéria de capa do primeiro número de uma nova e excelente revista sobre música e cultural geral: Pipoca Moderna. A matéria, assinada por José Emílio Rondeau, um dos editores da revista, trazia como título "Certeiro, exato e forte como um samurai". Abaixo a reprodução da matéria:
"Irado e magoado por ser chamado de 'um sub-Gilberto Gil', Djavan iniciou uma série de discos que, cada vez mais, delineavam uma assinatura personalíssima, progressivamente distante do que muitos viam nele. E que ele não era. Assim, sempre usava o elemento surpresa para eliminar, ou aliviar, o pré-conceito.
Há exatamente um ano, quando vasculhava ainda em Djavan a procedência e sua tão estranhada música, ele conseguia resguardar uma nesga de anonimato que o permitia até receber voz de prisão em pleno centro de São Paulo - um episódio real que embaraçou o delegado, policiais e detetives e que, por fim, transportou Djavan para os primeiros cadernos dos jornais e, possivelmente, apresentou-o a uma grande parte do público que mantinha-se incólume a sua música, mesmo que de maneira tão gauche. Afinal, naquele tempo Djavan encarnava um fenômeno bastante peculiar na cena musical: era um artista de prestígio crescente entre os artistas, mas que, de alguma forma, mantinha-se à margem dos ditatoriais playlists das rádios e mais ainda dos toca-discos. Por ineficiência promocional ou por cegueira (ou surdez) coletiva, Djavan era um artista adorado por muita gente, mas rigorosamente desconhecido.
Sua música também não ajudava. A capacidade que Djavan sempre teve de, em pinceladas exatas, criar paisagens musicais tão diversas, impossibilitava qualquer fácil deglutição num país tão viciado no venha-a-nós-vosso-reino. As letras falavam de coisas a que todos já haviam se acostumado a ouvir, mas por caminhos poéticos vertiginosamente opostos aos de costume, que misturavam verve quase literária a prosa coloquial com naturalidade que enervava. Sem contar os ritmos que desnorteiam qualquer um que esqueça que samba, blues, maracatu, maculelê, afoxé, rock têm origem comum na África e aceitam ser transformadas em mesclas democráticas. Na bestificante e assustadora padronização por baixo da maior criação musical brasileira, parecia não haver lugar pra Djavan.
O fato é que Djavan só começou a crescer nos olhos e ouvidos do público justamente através de seus admiradores ilustres e tão mais digeríveis, como Maria Bethânia (que gravou 'Álibi') e Roberto Carlos (que gravou 'A Ilha'). Nova armadilha formou-se então: Djavan passou de quase desconhecido a compositor sem voz, rosto, menos ainda. Mas, pouco depois, começou a rolar uma curiosa bola de neve. Em seu terceiro álbum, Alumbramento, Djavan incluiu uma música que, misteriosamente, conseguiu infiltrar-se nas rádios e acabou tornando-se uma das faixas mais executadas em todo o país em 1980, 'Meu Bem Querer'. A bola não parou mais de rolar. Famoso de súbito, Djavan ganhou voz, pouco dinheiro - já que nunca fora um grande vendedor de disco a até três meses atrás, embora as bilheterias de seus shows sempre afirmassem o contrário - e, o mais importante, tornou-se um artista desejado por outras gravadoras, as mesmas que antes não pestanejariam uma vez sequer ao dizer-lhe não. Na disputa de seu passe estava a CBS.
A negociação com a CBS durou um ano, até meados de 81. A proposta inicial da gravadora (ambas partes negaram-se a especificar quantias) estava bastante distante do que Djavan pretendia e foram necessárias diversas modificações nos termos da contratação até chegar-se a um acordo. O problema não resumia-se a números, admite Djavan, mas foram feitos cinco contratos para que um fosse aceito. No derradeiro, Djavan acrescentou quatro cláusulas e retirou três.
Depois de seis meses de um crescendo de expectativa - gerado, em parte, pelo alto pendor badalativo da CBS, em parte pelo simples fato de Djavan estar, a essa altura, há um ano e meio sem gravar - foi anunciado que Djavan, uma das promessas mais viáveis da verdadeira renovação da música do Brasil, gravaria nos Estados Unidos. Com um produtor norte-americano.
As pedras começaram a chover feito tempestade. O exemplo mais próximo de junção EUA/Brasil em termos de música brasileira, o período Nightngale/Realce/Luar de Gilberto Gil, havia-se mostrado tão fracativo quanto frustrante. Ninguém - inclua aí mais crítica do que público e indústria fonográfica - esperava nem desejava ver mais um artista brasileiro engolido pelo fascínio fácil do ouro de tolo da América. Menos Djavan, ainda tão refrescante, ainda tão potencial. Logo Djavan, que se mostrava tão avesso à ideia de buscar o que fosse nos Estados Unidos, que já dissera na imprensa que 'é fogo fazer um som igual ao que está-se fazendo lá fora, onde está zero mesmo, parou tudo, acabou, é aqui que a gente tem que se virar'. Mesmo assim Djavan foi e a CBS apostou suas melhores cartadas em sua ida: na falta de David Grusin e Quincy Jones, concordaram em contratar a produção de Ronnie Foster, que, entre outros, já trabalhara com George Benson. Músicos de alto quilate - como o baterista Harvey Mason, o flautista Hubert Laws e o saxofonista Ernie Watts - foram arregimentados para complementar a formação habitual da banda de Djavan, Sururu de Capote. E, cacife dos cacifes - Stevie Wonder acabou por adicionar sua gaita ao diálogo em versos de 'Samurai', uma das faixas de Luz, o álbum que resultaria de 45 dias trancado no Yamaha Studio, em Los Angeles.
Quando retornou ao Brasil, Djavan tinha à sua espera uma imensa curiosidade. E uma animosidade talvez até maior. Afinal de contas, o que Djavan teria ido buscar nos Estados unidos, justo agora quando uma explosão de popularidade mostra-se iminente? Justo agora quando qualquer tipo de concessão, depois de tanta persevernça para não desviar de seu plano de voo inicialmente traçado, era desnecessário? "
(continua)
Ótimo post. Um resgate de artigos sobre música no Brasil regido pelos militares. Parabéns.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Marcelo
ResponderExcluirMe lembro bem dessa época.
ResponderExcluirÉpoca bem criativa,quando o que de melhor se produzia no país era mais valorizado
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