Em 1988 o movimento tropicalista fazia 20 anos, e na ocasião o jornal O Pasquim fez uma ampla matéria, de quatro páginas, sobre o assunto. Um dos textos que fazem parte da matéria fala sobre a reação dos poetas concretistas ao movimento e seu apoio à estética da tropicália, que como o concretismo, buscava quebrar barreiras. Abaixo, transcrevo o texto, que não vem assinado, intitulado "Os aplausos antropófagos", embora, apesar do título, pouco se fala sobre os concretistas:
"Pelo menos dois caminhos levaram ao tropicalismo. Um passa pelo grupo de concretistas de São Paulo (Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari) que, desde o início dos anos 60, defendiam uma arte útil, que se infiltrasse nos meios de comunicação de massa, com 'ênfase visual, ligado às técnicas da publicidade, das manchetes de jornal às histórias em quadrinhos.'
Esses intelectuais, hoje confinados às pesquisas sobre literatura e comunicação na PUC de São Paulo, tiveram grande influência na época - por exemplo, sobre Hélio Oiticica, nas artes plásticas. Eles se inspiraram na antropofagia de Oswald de Andrade, 'o culto da estética instintiva da terra nova', expresso no Manifesto Pau Brasil, de algumas décadas de Augusto de Campos. Na interpretação de Augusto de Campos, tratava-se de canibalizar, mesmo, 'devorar as técnicas e informações dos países desenvolvidos, para reelaborá-las com autonomia, convertendo-as em produto de exportação'. Agir como o antropófago, que devora o inimigo para adquirir suas qualidades.
O segundo caminho tem início menos erudito. Começa na Bahia, de onde vieram para o Rio alguns jovens artistas: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa. Gil chega a ser militante do grupo nacionalista, que se opunha às guitarras na música brasileira. Ele e Caetano, que jamais gostou de política, terminaram numa prisão da ditadura militar. Tiveram a cabeça raspada, foram levados para a Bahia, impedidos de aparecer ou dar entrevistas e, afinal, por acordo com seus carcereiros, asilaram-se voluntariamente em Londres. Como isso aconteceu?
A explicação só tem sentido no clima de radicalismo ideológico de 1968. Paralelamente ao Festival da Canção da Globo, houve um happening tropicalista na boate Sucata, de Ricardo Amaral. Era uma espécie de resposta ou desagravo às vaias do Tuca, de São Paulo. No cenário, dominava a bandeira de Hélio Oiticica, com sua legenda: 'Seja marginal, seja heroi'. a certa altura, Os Mutantes dedilhavam no violão alguns acordes que os censores acharam parecidos com os do Hino Nacional.
A delação corria solta no meio artístico. O ódio dos militares se concentrava em Geraldo Vandré, autor de Caminhando. Por contágio, atingia tudo que era diferente, inusitado. Zuenir Ventura cita um radialista, Randal Juliano, como responsável pela decisão de prender Caetano e Gil, tão logo um juiz proibiu o show da boate Sucata. Daí a cabeça raspada (os cabelos grandes na época incomodavam muito) e, não se tendo constatado qualquer culpa, o exílio na Bahia, onde os dois tinham que se apresentar diariamente a um oficial do Exército.
Caetano comentou, em 1972, de volta de Londres, que havia se tornado, em 68, um ídolo 'para consumo de intelectuais, jornalistas, universitários em transe'. E completou: 'Na sua miséria, a intelectualidade brasileira via em mim um porta-estandarte, um salvador, um bode expiatório'.
Caetano, com Macalé ao fundo |
Todos esses fatos eram surpreendentes para o jovem baiano que, anos antes, alertado pela irmã Maria Bethânia para o sucesso que fazia a jovem guarda, teve a ideia de se fazer acompanhar pelos Blue Boys (*) em Alegria, Alegria - sem saber o quanto era feroz a briga entre nacionalistas e internacionalistas. Isto o incompatibilizou com a plateia do Tuca: as roupas, os gestos, o rapagão louro foram acessórios na grande vaia. Mas essas roupas e gestos irritaram, mais que tudo, os militares radicais, convencidos, na época, de que o movimento hippie era uma armação para minar a estrutura da família brasileira."
(*) Na verdade o grupo que acompanhou Caetano em Alegria Alegria se chamava Beat Boys
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