Um dos melhores discos de rock nacional dos anos 80 - um período de tantos lançamentos nessa área - foi na minha opinião, "Essa Tal de Gang 90 & Absurdetes", de 1983. Um álbum de grande criatividade, surgido da mente inquieta de Júlio Barroso, de quem já falei nesse espaço. Quando comprei esse vinil, eu o ouvia muito, várias vezes ao dia, o disco todo ou determinadas faixas, de tão agradável que se tornou sua audição. Uma crítica muito favorável e a esse álbum foi publicada por Ezequiel Neves, na revista Pipoca Moderna nº 4 (nov/dez 83) :
“Escândalos dos
escândalos: foi preciso esperar 15 anos (ou séculos?) para que surgisse no país
o Tropicália Vol. II. Exagero? De forma alguma! Mas enquanto aquele genial
projeto resgatava do limbo formas musicais brasileiras consideradas cafonas
pela intelectualidade, Júlio Barroso, via Gang 90 & Absurdetes, nos
gratifica com uma obra multimídia provando que a África é a Mãe Terra da música
popular, sem linhas divisórias de raças ou idiomas. O tom-tom dos tambores
ancestrais é o mesmo tanto em Nova York como em Nova Iguaçu.
Lógico que o disco Gang 90 & Absurdetes é um projeto
que só será deglutido se tivermos seu encarte à mão. Mas, afinal, o carioca
Júlio Barroso sempre foi fascinado pela informação; basta lembrarmos seu tempo
de editor da fabulosa revista Música do Planeta Terra (idos de 76/77). Aliás,
seu LP é a própria revista transportada para o vinil. Pura obra-prima em 33
rotações. Mas é bom lembrar o que dizia Virgínia Woolf a respeito de Ulisses, de James Joyce: ‘Nenhuma
obra-prima tem o direito de ser chata’.
E Gang 90 & Absurdetes,
felizmente, não tem nada de nauseabundo.
São apenas 10 faixas.
Mas essas 10 faixas são o próprio caldeirão fervente de informações sonoras,
mapa geográfico do swing, despirocadas guloseimas para os tímpanos, cucas e músculos.
Contando com músicos do calibre de Herman Tôrres, Luiz Paulo Simas, Otávio
Filho, Gigante Brazil, Guilherme Arantes, etc... e mais as vozes das
Absurdetes, Júlio e parceiros constroem um caleidoscópio que é pura
desrepressão. Os xenófobos vão odiar, não apenas o disco todo, mas
principalmente a presença coloquial do idioma inglês nas letras. E, como
poucos, Júlio sabe verbalizar o transe de maneira acachapante. Exemplo: ‘Zoom
navalha corta um globo/ Lâmina luz olhar/ Desenhando um poema/ Corpo nu deusa
lunar’ (Spaced Out in Paradise). E há também um poema que é a própria síntese
da antropologia: ‘Meu amor/ Vem me abandonar (...) Já foi assim mares do sul/
Entre jatos de luz beleza sem dor/ a vida sexual dos selvagens’ (Nosso louco
Amor).
Mas a petulância
(amantíssima petulância!) de Júlio vai mais longe. Ele é capaz de assinar uma
letra, a de ‘Românticos a Go-Gô em que os versos só contém citações de gênios,
começando com “Donga, Cartola, Guevara, Sinhô’ e terminando com ‘Marley,
Duchamp, Oiticica, Xangô’. E também declama, sobre uma base de reggae espacial,
uma belíssima confissão de amor ao rei dos Beats, Jack Kerouac.
Se me perguntarem de
qual faixa gosto mais, vou ficar mudo, mesmo se tiver tentado a responder que é
‘Telefone’ ou ‘Nosso Louco Amor’ ou ainda ‘Eu Sei, Mas Eu Não Sei’ – o que
seria a resposta mais plausível para essa obra-prima, produzida por Luiz
Fernando Borges e que teve a direção musical de Herman Tôrres. O que me deixa
mais feliz e gratificado é que, com incrível bom humor, Gang 90 & Absurdetes guilhotina a linha divisória que existia
entre a música de vanguarda e a popular. Ave Júlio!
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