O trabalho de Raul Seixas foi marcado pelo alto teor filosófico (principalmente na fase de sua parceria com Paulo Coelho) e uma postura anárquica e irreverente. Em 1976 Raul lançava seu quarto disco solo "Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás", e ainda na fase de gravação e finalização do trabalho, escreveu um texto para o jornal Hit Pop, um tabloide que acompanhava a revista Pop, onde ele fala sobre a fase de preparação do álbum, que estava prestes a ser lançado. Abaixo, transcrevo o texto de Raul:
“No momento não existe no mundo nada novo. As
águas parecem pedras. Existe um vazio, um momento caótico no que se refere a
qualquer esfera de movimento das ‘coisas do homem’. A arte é o espelho social
de uma época e tudo o que se passa. O artista, criador, sente profundamente, e
conscientemente ou não, acaba por comunicar esse momento dentro do seu próprio
prisma. E existem tantos prismas como existem muralhas. Embaixo desse mar
petrificado o comunicador tenta, com seus instrumentos de trabalho, ajudar a
ordem natural das coisas a movimentar-se de novo. Ajuda, sem impor, à
despetrificação do rio para que as águas do processo histórico continuem a
correr. Nada acaba. Tudo é mutável.
Eu escolhi ser artista no sentido de viver nessa
sociedade, dando meus gritos e pontos de vista, e ser ao mesmo tempo, um bom
surfista na onda da frente, de onde vislumbro intuitivamente o Novo momento. O novo
chegou e só quem pode detectar o novo é aquele que dispõe de um olho Novo, caso
contrário vai ser sempre o Novo em sua frente como velho. É como meu parceiro
Paulo Coelho diz: ‘a humanidade caminha como se dirigindo um carro e captando o
momento presente através de um espelho retrovisor. Ora, quando se dá o insight
do presente vivido naquele instante, o retrovisor do carro já fez o momento
percebido se transformar em passado.’ E assim se torna mais fácil e mais cômodo
deixar as coisas como estão, como medo de viver ou enfrentar um Novo
desconhecido.
Estou pouco a pouco vencendo meus problemas que
deixam de existir à medida em que eu me sinto bem sem eles. Isso para mim é a
única medida utilizada para saber o que quero na vida. Me faz bem isso e não me
faz bem ou feliz aquilo.
Há Dez Mil
Anos Atrás, que é o disco que estou gravando agora, foi, digamos, uma nova
muralha que galguei e pulei. Sei que há muitas muralhas.
Meu objetivo fundamental sempre foi o homem e
sua equação. Eu, como homem, continuador da história em ’10 mil anos atrás’, me
senti como o velhinho da esquina da Rio Branco, como Jesus, amor, assassino,
bruxos e bruxas em fogo. Moisés, Maomé, Pedro, o apóstolo, o papa, o drama
Babilônico, Drácula, discos voadores e arca de Noé, Salomão, Zumbi dos
Palmares, Hitler ou um soldado solitário. Minha cabeça se projetava em livros
sagrados entre Gitas e Umbanda. Fui macaco, Rapunzel e tudo mais que eu vivi
por esses séculos me provaram que as águas petrificadas do rio estão próximas a
correr de novo. E aquém disser que estou mentindo, tiro o chapéu.
Sobre o LP Há
10 Mil Anos Atrás, digo que está sendo preparado por mim e pelo Paulo
Coelho com todo vapor que temos em nós. A primeira fase das composições já está
praticamente terminada, pois desta vez estamos mais ligados e trabalhando
juntos em letras e músicas, sem ficar aquela coisa de botar letras nas músicas
dele ou eu botar música nas letras do Paulo. Assim, brigando, discutindo, 3
horas da manhã, entre cafezinhos requentados, estamos no final não só da
relação das músicas, mas na concepção global do trabalho. É um Lp muito claro e
muito bonito.
A próxima fase é comigo e com meu velho e
predileto maestro Miguel Cidras Rivas, que virá passar algumas semanas aqui em
casa em ordem de ouvirmos discos, falar de músicos, arte, burilarmos as
orquestrações em códigos diferentes que um outro maestro faria. Meu trabalho
com o maestro Miguel é incrível! Mostro para ele exatamente o feeling de uma passagem musical e ele a
capta por intermédio de um código meu que só ele se acostumou a sentir. Por
exemplo, eu digo: ‘Miguel, aqui nessa frase... me ensina a segurar... a barra
de te amar... eu quero uma harmonia azul turquesa com... assim um cheiro leve
de jasmim mas ao mesmo tempo a nota dissonante tem que ser como um som da pancada de um carimbo de um tabelião às
cinco horas da tarde no centro da cidade... entendeu? E ele sempre entende e
pega e escreve exatamente o que eu ‘sensoriava’. Ouro de Tolo, Gita, Trem das 7, essas músicas foram
orquestradas assim desse jeito abstrato.
Há Dez Mil
Anos Atrás será gravado no estúdio de 16 canais da Philips e logo estará
pronto, pois vou entrar no estúdio com todo o trabalho já pronto. É bem mais
fácil e perfeito assim. Vou gravar a maior parte do Lp com o grupo Flamboyant e
mais a guitarra de meu cunhado Gay Vaquer (aquele americano que gravou aquele
Lp ‘20 Anos de Rock’ comigo), Ele é indispensável nesse trabalho. No mais,
estou ansioso para essa nova fase de um novo disco a mais chegar ao ouvido dos
que ouvirão.
OS: De resto... só cortei meu cabelo bem
baixinho. Me retei e cortei.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário