Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Jards Macalé: Desafinando Coros em Tempos Sombrios - 2ª Parte

A penúltima faixa do LP, com as composições 'Farrapo Humano', de Luiz Melodia, e 'Morte', de Gilberto Gil, fala de paixão, suicídio e morte. A primeira, um rock-blues apoiado em riffs de violão, baixo e bateria, característicos do gênero, contém versos memoráveis como: 'Estou tão acabado/ Tão abatido/ Minha companheira que venha comigo (...)/ Eu choro tanto, me escondo, não digo/ Viro um farrapo/ Tento suicídio/ Com caco de telha ou caco de vidro/ Da melhor maneira possível'. Em seguida, o samba-canção 'Morte', de Gil, interpretado de forma pausada e com arranjo discreto, compõe um clima lúgubre com versos 'A morte é a rainha que reina sozinha/ Não precisa do nosso chamado/ Recado (Medo)/ Pra chegar'. Por fim, a balada soul de Macalé e Duda, 'Hotel das Estrelas', que fora consagrada no show Gal a Todo Vapor, encerra o álbum. Macalé entoa apenas a primeira estrofe, acompanhado ao violão: 'Dessa janela sozinha/ Olhar a cidade me acalma/ Estrela vulgar a vagar/ Rio e também posso chorar...' Esses versos parecem traduzir a atmosfera de solidão, isolamento e incerteza que pairava sobre muitos brasileiros naqueles tempos sombrios.
O disco, como muitos outros produzidos numa época em que o formato LP era dominante, possui certa unidade refletida na interação entre músicas, arranjos e interpretações. Porém, as gravações apresentam características que destoavam dos padrões técnicos e estéticos estabelecidos pela indústria a partir de 1970. Vale lembrar que o álbum foi produzido no mesmo ano em que a indústria da música no Brasil deu um importante salto tecnológico com a construção do Estúdio Eldorado em São Paulo, o primeiro com dezesseis canais da América Latina, montado com equipamentos de última geração. Essa iniciativa, seguida de imediato por outras gravadoras, praticamente superou a defasagem tecnológica existente até então entre a indústria fonográfica brasileira e a dos países desenvolvidos. Porém as transformações não ocorreram apenas no âmbito dos equipamentos. Inserido num processo mais amplo de desenvolvimento da indústria cultural, o setor fonográfico brasileiro passou por mudanças em suas formas de organização, aprofundando a divisão do trabalho e adotando novos procedimentos de gestão das empresas. Profissionais com qualificações específicas foram incorporados aos processos de produção e distribuição da mercadoria musical como o diretor artístico, o produtor, o diretor de marketing, entre outros.
Emerge nesse momento a figura do 'homem de estúdio', personagem dotado de habilidades para operar equipamentos destinados a interferir no material sonoro visando a equilibrar timbres, pulso, alturas, intensidade, nitidez, etc. Cabe a essa nova competência promover o controle da 'tensividade' da canção, seja ela de natureza somática (quando associada ao ritmo, como é o caso das  músicas que sugerem a dança) ou passional (quando o artista, em canções românticas, expõe ao ouvinte a sua dor, seu estado de alma).
A obra musical, nesse novo patamar de racionalização da produção, acabou dominada 'pelo detalhe técnico, pelo efeito, substituída pela fórmula' (Márcia T. Dias - Os Donos da Voz: Indústria  Fonográfica Brasileira e a Mundialização da Cultura). No LP aqui estudado, a leve desafinação dos instrumentos, notável em alguns fonogramas, a instabilidade do andamento e o canto solto de Macalé, em meio à rouquidão, à respiração ofegante e soluços, compuseram uma sonoridade peculiar. Tais características não devem ser associadas ao descuido, à inabilidade ou à desatenção dos artistas. Mais preocupados com espontaneidade, a emoção e o sentimento no momento da criação, eles fizeram com que esses elementos se tornassem constitutivos do estilo. Desse modo, produziram uma sonoridade crua e áspera que, de certa forma, refletiu a postura marginal e underground da época. Porém, tal sonoridade conflitava com os novos parâmetros técnicos e estéticos da produção fonográfica. Aqui talvez resida um dos aspectos mais contundentes da obra de Macalé, esse artista que optou por nadar quase sempre contra a corrente: a rebelião contra o que Adorno, usando uma expressão de Steuermann, chamou de 'barbárie da perfeição', uma das faces do fetichismo na música que se aprofundava no meio fonográfico do Brasil naqueles anos. Mesmo eleito por alguns críticos como o melhor lançamento de 1972, o LP Jards Macalé não obteve da gravadora o suporte necessário para divulgação. Devido ao fraco desempenho comercial, foi retirado de catálogo e o artista teve seu contrato rescindido com a empresa (*). Provavelmente, essa tenha sido mais uma razão para que Macalé fosse agraciado com a alcunha de maldito. Maldito?! Maldito é a..."

(*) Essa informação não é correta. Macalé lançou seu segundo disco, "Aprender a Nadar" pela mesma gravadora

2 comentários:

  1. Ser rotulado de maldito pela indústria cultural é elogio.

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  2. Sem dúvida. Ser maldito é não se prender a modismos ou seguir o que manda o mercado

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