Palavras Domesticadas

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sábado, 17 de fevereiro de 2018

Gal Costa - Jornal Hit-Pop (1977)

Em 1976 Gal Costa lançou o álbum Gal Canta Caymmi, que foi muito bem recebido por  público e crítica. Nesse disco Gal homenageava o grande mestre que influenciou tanta gente em nossa música, em especial os baianos. Após ouvir inúmeras composições de Caymmi e selecionar o repertório, o disco foi lançado tendo que se deixar muitas boas composições de fora. Em janeiro de 1977, o jornal Hit-Pop, suplemento da revista Pop, traz uma entrevista com Gal, que ensaiava o show que seria realizado com o repertório do disco. Na entrevista Gal fala de seu trabalho, do disco, do show, e de uma polêmica que acontecia na  época, entre os baianos e os demais artistas nordestinos, em especial os cearenses. A matéria intitulada "Depois dos trinta, Gal quer voltar a acontecer" é assinada por Eduardo Athayde:
"Era a terceira vez que Vatapá era ensaiada. Naquele calor infernal, Gal Costa se empenhava ao máximo, movimentando-se na saleta de ensaios da gravadora Phonogram. Seus músicos é que demonstravam cansaço. Gal sentou-se ao lado do guitarrista Perinho e reclamou:
- Tá faltando molho. Aumenta o pique, Perinho.
A uma ordem do líder, Rubão (baixo), Antonio Adolfo (piano) e Pedrinho (bateria) empreenderam um pique que deu a devida retaguarda rítmica à pulsante voz de Gal. Assim alegre, ela retomou a alegria, os vestidos floridos, o riso aberto.
- O pique nunca deixou de existir, mas está tudo mais forte agora. Estou louca para pisar num palco e rasgar o peito.
Quando isso acontecer, o público verá uma cantora cheia de garra e de explosões, voltando ao gênero que abandonara nos tempos de 'Cantar' e 'Encontro com Caymmi'. Gal tem sido muito bem comportada, na voz e no palco. Ela analisa a mudança:
- Esses dois últimos anos de minha carreira foram super-gratificantes. O Caymmi, eu sempre admirei, mas não o conhecia pessoalmente. O show que fizemos juntos foi uma grande homenagem a ele, e só isso já tornava o espetáculo uma coisa difícil, corajosa. Ali, eu tinha que ter muita vitalidade, para compensar a quietude do Caymmi, e tentar equilibrar a coisa. Mas foi um show realmente genial.
São quase dez horas da noite. Gal está ensaiando desde as cinco, repassando músicas para conseguir aquele pique falado. Vestida de calça jeans, blusa vermelha amarrada na cintura, descalça, ela rodopia num minúsculo tablado de madeira, enquanto canta Baby. Gal está contente, e mais alegre fica ao lembrar dos 'Doces Bárbaros':
- Foi um momento maravilhoso. Reencontrei Gil, Cae, Bethânia. Somos pessoas que se conhecem há muito tempo, e que nunca se encontravam, à vontade, para discutir, curtir. Na Bahia, iniciando a carreira, éramos jovens e idealistas, sonhadores que queriam tomar o Rio de assalto. Com os 'Doces Bárbaros', tivemos a chance de de nos expormos, brigarmos da forma mais despojada possível. Isso tudo nos enriqueceu muito. Bethânia, que sempre foi a mais desligada do grupo, entrosou-se no show de verdade. Éramos como irmãos, e havia muita tensão no ar. Ou você pensa que irmão não briga? Ninguém podia mentir, e tivemos que rasgar o coração, para conseguir nosso intento. Tudo era encarado como uma forma de criação, e resultou num despojamento total das individualidades, e extrema boa vontade de todos.
Às onze, Gal resolve parar. E, da Barra, seguimos para seu apartamento em Ipanema., 'onde me seguro, enquanto as obras de minha casa na Barra não terminam'. Mal se abre a porta do sétimo andar, três cachorros, enormes filas, intimidam o visitante. Em poucos minutos, Gal está se servindo de vatapá e algas marinhas, mistura que garante ser ótima. Na tevê, um tape de futebol. Gal, sorvendo uma cervejinha na lata, quer saber: 'Rivelino joga bem, né, nego? Pelo menos, tem um chute arretado. Não entendo muito de futebol, mas me amarro no chute do Rivelino'.
Ao lado da amiga Vilma, Gal fica curtindo o jogo do escrete brasileiro, sem se esquecer de repartir atenções entre os três cachorros. Que continuam intimidando o visitante desavisado. Com os pés sobre o sofá - findo o tape, desligada a tevê - Gal Costa fala sobre sua vida, sua carreira:
- Agora, estou sentindo uma vitalidade muito grande nas pessoas, com relação à música. Uma vontade de criar coisas bonitas e fortes. Estou totalmente apaixonada pelo meu trabalho. Quero retomar as  coisas que fiz em Fa-Tal e Le-Gal, mas de uma forma nova e madura. Muito ritmo. Não sei se é o verão, mas parece que estou renascendo. Aliás, dizem que depois dos 30, a gente cria alma nova. Acho que isso é o tal de amadurecimento. Isso não quer dizer absolutamente, que Gal Costa se acomodou. Pelo contrário. Estou de olho, preparando o bote certo.
Resumindo. Em poucos dias, a brejeira Maria da Graça volta a dar lugar num palco, à exuberante Gal, misto de mulher e pantera, disposta a rasgar o peito e conquistar o público. E  é essa mesma Gal Costa que se mostra enfezada, ao comentar as  declarações de Fagner. O compositor cearense, tempos atrás, acusou o 'grupo baiano' de se fechar em igrejinha, impedindo a ascensão de novos valores. Gal está furiosa: 'Mas isso é uma ingenuidade das mais tremendas. Nunca tive, ou tivemos intenção de prejudicar alguém. Se Fagner não acontece é por incompetência. Belchior é novo e já estourou muito na praça. Ele é sacador, é brilhante, coisa que não acontece com Fagner. Isso é coisa de criança. Pior ainda. É uma forma para explicar incompetência. Aliás, quem é esse tal de Fagner?' Gal desculpa-se: quer dormir. "

4 comentários:

  1. Naquele tempo mulher de 30 já era madura mesmo.

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  2. Quem mais encrencou com o grupo baiano foi o Fagner mesmo,o Belchior fazia provocações-lítero-musicais.

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  3. Sim. Conversei recentemente com Ednardo sobre isso, e ele me garantiu que nunca teve treta com os baianos. O negócio era com Fagner mesmo

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