Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Bob Dylan - Revista Top (2005)

Em 2005 a editora Planeta lançava Crônicas Volume Um, um livro de memórias de Bob Dylan. Na ocasião a revista Top, em sua edição de outubro, lançou uma matéria de capa falando da publicação. Crônicas Volume Um faz parte de uma trilogia autobiográfica de Dylan (os dois volumes seguintes  não foram lançados). No livro, Dylan fala dos primeiros anos de sua carreira, numa narrativa confessional, iniciando  por sua viagem em 1961 para o bairro boêmio Greenwich Village, que veio a influenciar seus estilo de compor.
A revista comenta o livro, e transcreve o longo prefácio da edição brasileira, escrito por Eduardo Bueno, segundo a revista "um dylanista de longa data e certamente a voz mais adequada no Brasil para louvar o mito". Segue abaixo um trecho do prefácio da edição brasileira:
"Enquanto os Rolling Stones flertavam com o diabo, numa macumba para turista, Dylan, o demiurgo, o exorcista, tentava conjurar demônios interiores - os deles e os nossos. Quando Jimi Hendrix eletrificou All Along the Watctower ao limite do tolerável e tornou-se um deus, Dylan tocava a mesma música ao violão, sozinho no porão, como Robert Johnson revivido. Ele nunca cantou iê-iê-iê, já que sempre preferiu 'no, no, no'. E assim, enquanto os outros estavam indo (e enriquecendo, ou sumindo, ou morrendo, de pico ou de bala) Bob Dylan estava voltando - embora isso eventualmente o tenha feito andar em círculos.
Bob Dylan sempre foi um sujeito com um violão e um ponto de vista. Ou com uma guitarra e um ponto de vista. Ou com uma banda (a única boa o bastante para chamar-se simplesmente, The Band) e um novo e indecifrável ponto de vista. Os pontos de vista de Bob Dylan acabaram se tornando um mapa - tortuoso e áspero, labiríntico e sem saída, mas, ainda assim, um mapa - para toda a história da música pop pós 1962. Um roteiro sem porto seguro para uma, duas, três gerações. A trilha - não apenas sonora - que se abriu, e ao longo da qual percorreu todas as estações, manteve seus seguidores permanentemente à beira do abismo. Bob Dylan queimou as pontes que o levaram até aonde está, and he didn't look back - não tem vocação para virar estátua de sal.
Bob Dylan sempre fingiu que é dor a dor que deveras sente.
Dylan chegou a Nova York no gélido janeiro de 1961. O momento-chave já foi descrito por inúmeros biógrafos, mas nunca ganhou as cores, os sobretons e a singeleza da narrativa em primeira pessoa registrada nestas Crônicas. Em 20 de novembro, ele entrava no estúdio da Columbia Records para gravar seu primeiro disco, e o completou no dia seguinte, ao custo de US$ 402. São 13 canções, das quais apenas duas - Song to Woody e Talking New York - eram dele. As demais, clássicos do folk, mais ou menos obscuros, interpretados ao modo de Dave Van Ronk, como o próprio Dylan revela.
Mas, apenas cinco meses depois, em 24 de abril de 1962, ele estava de volta ao mesmo estúdio para gravar The Freeweelin' Bob Dylan, trazendo no bolso da jaqueta surrada um punhado de canções, entre as quais Blowin' in the Wind, Don't Think Twice, It's All Right, Girl From the North Country, Masters of War, A Hard Rain's A-Gonna Fall - e o resto é história.  Dylan, sabe-se lá como, abrira caminho para uma torrente de arrogância e sabedoria, simbolismo, ambição e graça que explodiu em um turbilhão de inovação, sofrimento e dissonância. Ao fazê-lo, completou sua maior obra: a invenção de Bob Dylan. Que ele tenha se revelado capaz de se reinventar pelo menos cinco vezes, é algo assombroso.
Entre Freewhellin' (lançado em novembro de 1963, uma semana antes do assassinato de John Kennedy) e New Morning (que chegou às lojas em outubro de 1970), Dylan gravou nove discos, entre eles cinco dos mais importantes da história do rock (Bringing It All Back Home, de maio de 1965, Highway 61 Revisited, de agosto do mesmo ano, Blonde on Blonde, de julho de 1966, The Basement Tapes, de julho de 1967 e John Wesley Harding, de fevereiro de 1968) sobre os quais não escreveu uma só linha neste livro: ainda bem que restam mais três volumes. New Morning foi lançado apenas três meses após aquele que muitos consideram o pior disco da carreira de Dylan, o álbum Self Portrait, no qual ele tentou se desinventar, mesmo que fosse tarde demais.
Entre New Morning e Oh Mercy, lançado em outubro de 1989, Dylan gravou outros 18 discos, entre os quais aquele que tem sido considerado seu melhor (Blood  on the Tracks, de janeiro de 1975) e compôs pelo menos cinco obras-primas (Blind Willie McTell, Angelina, Up To Me, Dignity e Series Of Dreams) que permaneceriam inéditas anos a fio. Oh Mercy marcou, conforme os críticos, um novo renascimento de Dylan, talvez o quinto. E a partir dele, se iniciou a Never Ending Tour, a turnê sem fim, que o trouxe três vezes ao Brasil, em uma delas para um dos mais surpreendentes shows de sua carreira, no pequeno Bar Opinião, em Porto Alegre, cidade que adora.
Como sua vertiginosa carreira, essa autobiografia - cujos estilhaços de ideias deixam imagens crepusculares silhuetadas no coração e na mente dos leitores - é uma obra tortuosa e fragmentária. Justamente por isso, não apenas é uma criação coerente com a criatura que a forjou como faz todo o sentido. Sentido similar ao que Bob Dylan conseguiu dar a um mundo progressivamente fora de si.
O livro que você acaba de ler revela que Bob Dylan tem fôlego para mais alguns renascimentos. Que o mundo moribundo pós -11 de setembro possa renascer desta era de trevas junto com o artista que tantas vezes ajudou a definir esses tempos sempre cambiantes. "

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