Escolhido pelo jornal O Globo como a personalidade da cultura do ano 2000, Gilberto Gil foi entrevistado pelo jornal em matéria publicada em 24/12/00 e assinada por João Máximo. Na época Gil estava envolvido com a trilha do filme "Eu tu eles", uma espécie de resgate à influência de um de seus primeiros ídolos, Luiz Gonzaga. Na época dividiu o palco com Milton Nascimento, Maria Bethânia e Moraes Moreira. Também pensava em levar adiante um projeto antigo, que viria à luz anos depois, um CD em homenagem a Bob Marley, que ele exalta na entrevista. Gil vivia um momento de grandes e variados projetos, que ele cita, além de sua visão sobre a religiosidade:
"Gilberto Gil não esquece a luz das estrelas e da lua varando o teto de telhas transparentes de seu quarto em Ituaçu, interior da Bahia, onde passou a infância. Ele considera aquela claridade - carregada de uma energia meio transcendental - um de seus primeiros alumbramentos. Ou seja, os primeiros sinais que o levaram a se transformar no homem introspectivo de hoje.
- Através daquelas telhas eu apreciava a noite, via o eclipse, esperava Papai Noel - lembra.
- Toda a ideia que passei a ter de luz, das candeias à lâmpada de Aladim, decorrem daqueles primeiros alumbramentos. A partir deles me relacionei com outras luzes, interiorizei-me, estabeleci uma ligação entre o homem e a transcendência. Tenho, por isso, um gosto pela religiosidade, pela necessidade do homem de se encontrar explicado no conjunto da natureza, no cosmos. E também para além dos sentidos.
Se é introspectivo o homem, são extrovertidos o compositor, o cantor, o poeta. Os mesmos que tiveram um ano também iluminado, senão repleto de alumbramentos. Vários foram os caminhos que levaram O Globo à escolha de Gilberto Gil como personalidade da cultura no ano 2000. Do disco que gravou para ser encartado no luxuoso livro que lhe dedicou o artista Bené Fonteles (Gil, voz, violão, em 15 canções) ao réveillon que ele e Maria Bethânia vão animar no Farol da Barra, revivendo o show que os dois fizeram juntos em setembro. Entre um fato e outro, houve a comemoração (com Moraes Moreira) dos 50 anos do trio elétrico em Salvador, o reencontro com a sanfona e a música de mestre Luiz Gonzaga na trilha do filme 'Eu tu eles', o disco e o show com Milton Nascimento, a visão de sua obra pelos olhos de artistas plásticos e a certeza de que poderá retomar em breve o projeto de um CD dedicado a canções de Bob Marley.
Num momento de introspecção e reavaliação de sua carreira, o tributo a Bob Marley é um projeto fundamental para Gilberto Gil:
- São canções de um dos artistas que mais me marcaram como músico e como ser humano - ressalta Gil atendo-se mais ao futuro do que ao já feito. - Bob Marly deixou em mim um resíduo colorido e perfumado que quero preservar. Nos últimos dez anos, tenho pensado muito nele, dos últimos representantes da questão diáspora negra, do papel do negro no mundo. Tenho vontade de retribuir a Bob essa grandeza. Pra isso, já conversei com Rita Marley, sua viúva, sobre minha ida até a Jamaica. Para completar a ponte Rio-Salvador-Kingston.
O projeto, porém não deve ser para agora. Gil - que não tem férias formais há muito tempo - já está com a agenda cheia para 2001: excursão com Milton no primeiro semestre (Uruguai, Argentina, Nordeste, EUA e Europa) e nova edição do festival Percpan (em Salvador, São Paulo, Rio, Marselha e Nova York). Fora aqueles convites que nunca recusa, como se sentindo obrigado a ajudar a quem quer que se interesse por sua arte.
Embora em entrevista recente tenha se definido como um ser errático, com 'gosto pela discussão política e social da arte', Gil não é de se envolver em polêmicas, muito menos em criá-las. E nas raras vezes em que se envolve, o faz com a serenidade, quase doçura de um sábio.
- Sim, acho que fui me tornando mais doce com o passar dos anos, mais tolerante sobre a existência daquilo que nega seus olhares, minhas afirmações - observa. - Já nasci avesso às brigas. A espada não é meu instrumento. Não acho que seja essencial meu ponto de vista prevalecer. Não tenho necessidade de ganhar as guerras, nunca fui um guerreiro. E cada vez mais aceito os diferentes modos de pensar a realidade.
Gil acredita que suas canções, em grande parte, destinam-se a pensar nisso, 'no fio tênue que separa o homem com o pé no chão e o homem com os olhos no céu'. Nisso, o poeta e o músico são uma entidade só. Há no autor das canções - o compositor e o letrista - um ímpeto pra que os dois se integrem:
- Às vezes, é a música que toma a frente e soluciona melhor esse diálogo . Outras vezes são palavras que fazem a aproximação. Mas o sentimento vem sempre antes de tudo. Aquilo que a gente pensa é invariavelmente antecedido do que a gente sente.
Ainda as diferenças entre letra e música;
- A palavra é fragmentada, a música não. A palavra segue por vários caminhos, ao passo que a música é pitagórica, um conjunto de sons organizados. Mas tanto uma como outra desembocam no caos sonoro, no mantra. A vida toda minha música tem tributado esse lado caótico, o som da natureza, a queda das águas, a reverberação do trovão, o canto dos pássaros, o soprar do vento. É a música natural, matemática. A palavra entra no meio. De repente, você emite um uivo e aquilo significa algo, cai num lugarzinho qualquer onde a palavra mora. Tudo acaba caindo no verbo.
A religiosidade em Gil é exercida de um modo próprio, o menino de formação católica se convertendo no homem que descobriu o candomblé - mais precisamente, o terreiro de Egun - pelas mãos de Mestre Didi e Juanita. Os búzios disseram que ele é Xangô. E no entanto os espíritos são difíceis de serem compreendidos por seu pensamento lógico.
- A reencarnação? De fato, um pensamento lógico como o meu não atende bem esse fenômeno da migração das almas para os corpos. Os que escolhem esse caminho devem ter vivências a respeito. Eu não tive. Respeito essas visões, embora minha mente cartesiana as rejeite. Como diz Patrick Drouot (físico francês, estudioso de vidas passadas), é preciso estar livre da mente racional, deixar que o sentimento oceânico o invada, para poder aceitar. Houve tempo em que simplesmente rejeitava a ideia de reencarnação. Hoje, não. Mas não é um acreditar, é um concordar.
Novamente Gil se concentra no verbo, chamando a atenção para o cuidado que as filosofias religiosas têm com a palavra. Concorda com Fernando Pessoa - 'tudo vale a pena se alma não é pequena' - e acredita que o fato de ter vivido tudo o que já viveu, inclusive os êxitos deste ano, seja obra do destino.
- As coisas só acontecem porque você se impulsiona. Seus sonhos, seus mitos, em tudo há conformidade. Ou seja, 'conforme a idade', tudo o que o tempo e o espaço impulsionam. Em resumo, os espelhamentos: o mundo em mim, eu no mundo.
Voltando às suas luzes, Gil crê que o mundo seja uma permanente continuação do embate entre as trevas e a luz, a intuição e a razão.
- Do embate contra o sentimento gravitacional que nos prende ao chão e nos escraviza a impulsos rastejantes como a inveja, o ódio, a ira, o tributo ao pequeno ego. Alguns homens especiais que venceram esse embate? Einstein, Gandhi, Mandella, Martin Luther King... E, naturalmente, Dorival Caymmi."
Embora em entrevista recente tenha se definido como um ser errático, com 'gosto pela discussão política e social da arte', Gil não é de se envolver em polêmicas, muito menos em criá-las. E nas raras vezes em que se envolve, o faz com a serenidade, quase doçura de um sábio.
- Sim, acho que fui me tornando mais doce com o passar dos anos, mais tolerante sobre a existência daquilo que nega seus olhares, minhas afirmações - observa. - Já nasci avesso às brigas. A espada não é meu instrumento. Não acho que seja essencial meu ponto de vista prevalecer. Não tenho necessidade de ganhar as guerras, nunca fui um guerreiro. E cada vez mais aceito os diferentes modos de pensar a realidade.
Gil acredita que suas canções, em grande parte, destinam-se a pensar nisso, 'no fio tênue que separa o homem com o pé no chão e o homem com os olhos no céu'. Nisso, o poeta e o músico são uma entidade só. Há no autor das canções - o compositor e o letrista - um ímpeto pra que os dois se integrem:
- Às vezes, é a música que toma a frente e soluciona melhor esse diálogo . Outras vezes são palavras que fazem a aproximação. Mas o sentimento vem sempre antes de tudo. Aquilo que a gente pensa é invariavelmente antecedido do que a gente sente.
Ainda as diferenças entre letra e música;
- A palavra é fragmentada, a música não. A palavra segue por vários caminhos, ao passo que a música é pitagórica, um conjunto de sons organizados. Mas tanto uma como outra desembocam no caos sonoro, no mantra. A vida toda minha música tem tributado esse lado caótico, o som da natureza, a queda das águas, a reverberação do trovão, o canto dos pássaros, o soprar do vento. É a música natural, matemática. A palavra entra no meio. De repente, você emite um uivo e aquilo significa algo, cai num lugarzinho qualquer onde a palavra mora. Tudo acaba caindo no verbo.
A religiosidade em Gil é exercida de um modo próprio, o menino de formação católica se convertendo no homem que descobriu o candomblé - mais precisamente, o terreiro de Egun - pelas mãos de Mestre Didi e Juanita. Os búzios disseram que ele é Xangô. E no entanto os espíritos são difíceis de serem compreendidos por seu pensamento lógico.
- A reencarnação? De fato, um pensamento lógico como o meu não atende bem esse fenômeno da migração das almas para os corpos. Os que escolhem esse caminho devem ter vivências a respeito. Eu não tive. Respeito essas visões, embora minha mente cartesiana as rejeite. Como diz Patrick Drouot (físico francês, estudioso de vidas passadas), é preciso estar livre da mente racional, deixar que o sentimento oceânico o invada, para poder aceitar. Houve tempo em que simplesmente rejeitava a ideia de reencarnação. Hoje, não. Mas não é um acreditar, é um concordar.
Novamente Gil se concentra no verbo, chamando a atenção para o cuidado que as filosofias religiosas têm com a palavra. Concorda com Fernando Pessoa - 'tudo vale a pena se alma não é pequena' - e acredita que o fato de ter vivido tudo o que já viveu, inclusive os êxitos deste ano, seja obra do destino.
- As coisas só acontecem porque você se impulsiona. Seus sonhos, seus mitos, em tudo há conformidade. Ou seja, 'conforme a idade', tudo o que o tempo e o espaço impulsionam. Em resumo, os espelhamentos: o mundo em mim, eu no mundo.
Voltando às suas luzes, Gil crê que o mundo seja uma permanente continuação do embate entre as trevas e a luz, a intuição e a razão.
- Do embate contra o sentimento gravitacional que nos prende ao chão e nos escraviza a impulsos rastejantes como a inveja, o ódio, a ira, o tributo ao pequeno ego. Alguns homens especiais que venceram esse embate? Einstein, Gandhi, Mandella, Martin Luther King... E, naturalmente, Dorival Caymmi."
Eu acredito piamente na reencarnação e no Gilberto Gil.
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