Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 20 de março de 2017

Se Eu Quiser Falar com Gil (2000)

Escolhido pelo jornal O Globo como a personalidade da cultura do ano 2000, Gilberto Gil foi entrevistado pelo jornal em matéria publicada em 24/12/00 e assinada por João Máximo. Na época Gil estava envolvido com a trilha do filme "Eu tu eles", uma espécie de resgate à influência de um de seus primeiros ídolos, Luiz Gonzaga. Na época dividiu o palco com Milton Nascimento, Maria Bethânia e Moraes Moreira. Também pensava em levar adiante um projeto antigo, que viria à luz anos depois, um CD em homenagem a Bob Marley, que ele exalta na entrevista. Gil vivia um momento de grandes e variados projetos, que ele cita, além de sua visão sobre a religiosidade:
"Gilberto Gil não esquece a  luz das estrelas e da lua varando o teto de telhas transparentes de seu quarto em Ituaçu, interior da Bahia, onde passou a infância. Ele considera aquela claridade - carregada de uma energia meio transcendental - um de seus primeiros alumbramentos. Ou seja, os primeiros sinais que o levaram a se transformar no homem introspectivo de hoje.
- Através daquelas telhas eu apreciava a noite, via o eclipse, esperava Papai Noel - lembra.
- Toda a ideia que passei a ter de luz, das candeias à lâmpada de Aladim, decorrem daqueles primeiros alumbramentos. A partir deles me relacionei com outras luzes, interiorizei-me, estabeleci uma ligação entre o homem e a transcendência. Tenho, por isso, um gosto pela religiosidade, pela necessidade do homem de se encontrar explicado no conjunto da natureza, no cosmos. E também para além dos sentidos.
Se é introspectivo o homem, são extrovertidos o compositor, o cantor, o poeta. Os mesmos que tiveram um ano também iluminado, senão repleto de alumbramentos. Vários foram os caminhos que levaram O Globo à escolha de Gilberto Gil como personalidade da cultura no ano 2000. Do disco que gravou para ser encartado no luxuoso livro que lhe dedicou o artista Bené Fonteles (Gil, voz, violão, em 15 canções) ao réveillon que ele e Maria  Bethânia vão animar no Farol da Barra, revivendo o show que os dois fizeram juntos em setembro. Entre um fato e outro, houve a comemoração (com Moraes Moreira) dos 50 anos do trio elétrico em Salvador, o reencontro com a sanfona e a música de mestre Luiz Gonzaga na trilha do filme 'Eu tu eles', o disco e o show com Milton Nascimento, a visão de sua obra pelos olhos de artistas plásticos e a certeza de que poderá retomar em breve o projeto de um CD dedicado a canções de Bob Marley.
Num momento de introspecção e reavaliação de sua carreira, o tributo a Bob Marley é um projeto fundamental para Gilberto Gil:
- São canções de um dos artistas que mais me marcaram como músico e como ser humano - ressalta Gil atendo-se mais ao futuro do que ao já feito. - Bob Marly deixou em mim um resíduo colorido e perfumado que quero preservar. Nos últimos dez anos, tenho pensado muito nele, dos últimos representantes da questão diáspora negra, do papel do negro no mundo. Tenho vontade de retribuir a Bob essa grandeza. Pra isso, já conversei com Rita Marley, sua viúva, sobre minha ida até a Jamaica. Para completar a ponte Rio-Salvador-Kingston.
O projeto, porém não deve ser para agora. Gil - que não tem férias formais há muito tempo - já está com a agenda cheia para 2001: excursão com Milton no primeiro semestre (Uruguai, Argentina, Nordeste, EUA e Europa) e nova edição do festival Percpan (em Salvador, São Paulo, Rio, Marselha e Nova York). Fora aqueles convites que nunca recusa, como se sentindo obrigado a ajudar a quem quer que se interesse por sua arte.
Embora em entrevista recente tenha se definido como um ser errático, com 'gosto pela discussão política e social da arte', Gil não é de se envolver em polêmicas, muito menos em criá-las. E nas raras vezes em que se envolve, o faz com a serenidade, quase doçura de um sábio.
- Sim, acho que fui me tornando mais doce com o passar dos anos, mais tolerante sobre a existência daquilo que nega seus olhares, minhas afirmações - observa. - Já nasci avesso às brigas. A espada não é meu instrumento. Não acho que seja essencial meu ponto de vista prevalecer. Não tenho necessidade de ganhar as guerras, nunca fui um guerreiro. E cada vez mais aceito os diferentes modos de pensar a realidade.
Gil acredita que suas canções, em grande parte, destinam-se a pensar nisso, 'no fio tênue que separa o homem com o pé no chão e o homem com os olhos no céu'. Nisso, o poeta e o músico são uma entidade só. Há no autor das canções - o compositor e  o letrista - um ímpeto pra que os dois se integrem:
- Às vezes, é a música que toma a frente e soluciona melhor esse diálogo . Outras vezes são palavras que fazem a aproximação. Mas o sentimento vem sempre antes de tudo. Aquilo que a gente pensa é invariavelmente antecedido do que a gente sente.
Ainda as diferenças entre letra e música;
- A palavra é fragmentada, a música não. A palavra segue por vários caminhos, ao passo que a música é pitagórica, um conjunto de sons organizados. Mas tanto uma como outra desembocam no caos sonoro, no mantra. A vida toda minha música tem tributado esse lado caótico, o som da natureza, a queda das águas, a reverberação do trovão, o canto dos pássaros, o soprar do vento. É a música natural, matemática. A palavra entra no meio. De repente, você emite um uivo e aquilo significa algo, cai num lugarzinho qualquer onde a palavra mora. Tudo acaba caindo no verbo.
A religiosidade em Gil é exercida de um modo próprio, o menino de formação católica se convertendo no homem que descobriu o candomblé - mais precisamente, o terreiro de Egun - pelas mãos de Mestre Didi e Juanita. Os búzios disseram que ele é Xangô. E no entanto os espíritos são difíceis de serem compreendidos por seu pensamento lógico.
- A reencarnação? De fato, um pensamento lógico como o meu não atende bem esse fenômeno da migração das almas para os corpos. Os que escolhem esse caminho devem ter vivências a respeito. Eu não tive. Respeito essas visões, embora minha mente cartesiana as rejeite. Como diz Patrick Drouot (físico francês, estudioso de vidas passadas), é preciso estar livre da mente racional, deixar que o sentimento oceânico o invada, para poder aceitar. Houve tempo em que simplesmente rejeitava a ideia de reencarnação. Hoje, não. Mas não é um acreditar, é um concordar.
Novamente Gil se concentra no verbo, chamando a atenção para o cuidado que as filosofias religiosas têm com  a palavra. Concorda com Fernando Pessoa - 'tudo vale a pena se alma não é pequena' - e acredita que o fato de ter vivido tudo o que já viveu, inclusive os êxitos deste ano, seja obra do destino.
- As coisas só acontecem porque você se impulsiona. Seus sonhos, seus mitos, em tudo há conformidade. Ou seja, 'conforme a idade', tudo o que o tempo e o espaço impulsionam. Em resumo, os espelhamentos: o mundo em mim, eu no mundo.
Voltando às suas luzes, Gil crê que o mundo seja uma permanente continuação do embate entre as trevas e a luz, a intuição e a razão.
- Do embate contra o sentimento gravitacional que nos prende ao chão e nos escraviza a impulsos rastejantes como a inveja, o ódio, a ira, o tributo ao pequeno ego. Alguns homens especiais que venceram esse embate? Einstein, Gandhi, Mandella, Martin Luther King... E, naturalmente, Dorival Caymmi."


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