Rita Lee nunca escondeu sua grande admiração pelos Beatles, admiração essa que se iniciou em sua adolescência. Em 2001, inclusive, ela lançou um CD chamado "Aqui, Ali, Em Qualquer Lugar", com versões em português e em inglês de músicas dos Beatles. A revista da MTV nº 5, de novembro daquele ano trazia um testo de Rita sobre sua paixão musical pelo quarteto de Liverpool, num texto intitulado "Meu nome é Rita Lee e eu sou beatleólatra":
"Em 1962 minha irmã mais velha se casou com um inglês e foi passar a lua-de-mel em Londres. Na volta ganhei de presente o primeiro single dos 4 Fabs com Love Me Do e PS I Love You. Foi assim que comecei no vício.
De 1963 a 1970 eu bebi, comi, fumei e respirei Beatles. Vivia desenhando a silhueta dos 4 por todos os cantos, mas caprichei legal nos retratos de cada um deles a lápis sobre os papéis de melhor qualidade que consegui descolar: os que embrulhavam o pão que meu pai comprava toas as manhãs. Minha família tinha esperanças de que um dia aquele vício seria substituído por alguma faculdade, um marido ou até mesmo por outros heróis, como já havia acontecido antes com James Dean e Elvis. Quando os Beatles lançavam um disco eu economizava todos os meus tostões para poder comprar três: o primeiro para guardar, o segundo para guardar e o terceiro para deliciar meus ouvidos e minha alma.
Resumindo o meu coté de fã xiita, apenas fui uma daquelas trocentas meninas do planeta que deram plantão na frente da Apple debaixo de sol, chuva e neve. Um belo dia tive a sorte de testemunhar os 4 saindo de lá e, enquanto a polícia pastoreava a multidão gritalhona, eu voei pra lamber a maçaneta da porta. Aconteceu que nesse desvio de percurso fui parar bem na frente da garagem dos fundos da Apple, no sentido contrário de onde estava a multidão, e dessa maneira fui privilegiada com um close único do Rolls-Royce branco saindo. E o melhor de tudo: ganhei um aceno e um sorriso exclusivo de Lennon! Para quem nunca conseguiu assistir a um show ao vivo dos Beatles guardo essa cena absolutamente intacta no resto de memória que ainda me resta. Na escola, eu fazia parte de um quarteto de meninas chamado Teenage Singers - eu tocava bateria e cantava. Por volta de 1965/1966 entrei numas de aprender baixo para um dia eventualmente impressionar Paul. E foi assim que num festival de colégios convenci um rapaz dentuço meio parecido com Sal Mineo a me ensinar o ofício. Se chamava Arnaldo e era o baixista do Wooden Faces, uns garotos que só tocavam músicas instrumentais e não conheciam nada de Beatles. Desse encontro resultou uma fusão Teenage Singers/Wooden Faces, que depois de algumas formações acabou virando um trio absolutamente beatlemaníaco: Os Mutantes.
Quando os Beatles se separaram, comecei a sentir os efeitos da abstinência do vício, e para curar o cold turkey me mudei para a casa do inimigo, dizendo a mim mesma: 'Welcome the Rolling Stones!' De vingança pela traição dos 4 terem se casado com outras que não eu, recolhi toda a minha beatlerabília num baú e estoquei na garagem de casa. Devo ter ficado uns dez anos de mal dos Beatles, entre a época das Cilibrinas do Eden e Tutti Frutti. Confesso que fiz esculhambações públicas dizendo que preferia o lado bad boys dos Stones, a teatralidade de Bowie e a porra-loucura do Iggy Pop. Eu me recusei a botar Beatles na vitrola (vitrola!) até para meus dois filhos mais velhos. Em agosto de 1980 faleceu minha irmã Mary Lee, a mesma que havia me apresentado aos caras. Em dezembro do mesmo ano, lá se foi Lennon. Naquela noite tive uma overdose braba de Beatles, desenterrei o baú da garagem e chorei tudo o que tinha direito. Aos poucos comecei a incluir algumas músicas deles nos meus shows, o vício estava sob controle, 'um tapinha não dói', já dizia eu. Eu me lembro que, nos áureos tempos beatleolíticos quando ouvia alguma versão em português do repertório deles, sentia calafrios de pavor. E ai de quem fizesse um cover que não fosse absolutamente igual. Por outro lado rolavam versões pornô-light de algumas letras deles e cada 'conja' (gíria da época que significava grupo, banda) tinha a sua... 'Feche os olhos e sinta 2 metros e 30' era a mais conhecida, mas haviam outras mais apimentadinhas como a de Yesterday: 'Ontem dei minha bunda pra você comer, mas você não quis comer meu cu, oh! Ontem dei prum jaburu!' E os filmes dos 4 Fabs? Minha outra irmã Virginia Lee e eu chegávamos da escola e mãos à obra preparar marmitas para varar as sessões. Éramos sempre as primeiras da fila de entrada e as últimas da fila de saída. O lance era decorar as falas dos personagens, detalhes dos cenários e figurinos, tintin por tintin, para depois sabatinar qualquer fã que encontrássemos pela frente. As perguntas eram mais ou menos assim: 'Qual é o diálogo entre Ringo e George na cena do vagão do trem? Que objeto está no chão do lado esquerdo e o que está escrito na etiqueta da mala em que John está sentado?' Quando estreou Yellow Submarine tomei um ácido durante o Canal 100. A lisergia bateu na hora em que a tripulação partia para a viagem, daí que eu entrei na tela e embarquei junto. No meu tempo a pedrinha de um puríssimo Sunshine durava 12 horas, portanto naquele dia dormi literalmente no cinema, mas acordei a tempo de pegar a primeira sessão do dia seguinte para repetir o mesmo visual. Bem, já que não posso dizer que os Beatles foram, meus primeiros namorados, digo que sem dúvida são a grande paixão musical da minha vida, dessas que a gente ama, briga, faz as pazes e vive feliz para sempre. Um vício bom demais paras vez ou outra dar uma recaída bonita!"
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