1975 foi um ano marcante para Alceu Valença. Após participar do festival Abertura da Rede Globo, com sua composição Vou Danado pra Catende, Alceu se lançava para o mercado de música de forma mais contundente. Após lançar um disco em dupla com Geraldo Azevedo, em 1972, e seu primeiro álbum-solo, Molhado de Suor, no ano anterior, Alceu investiu pesado em seu primeiro grande show, com produção e uma banda de primeira, em cuja formação se incluía Zé Ramalho e o pessoal da banda recifense Ave Sangria. A gravação desse show acabaria resultando no ótimo disco Vivo!. Sua postura e sua figura lembravam um astro do rock, mas sua música trazia toques regionais, das coisas que sempre ouvia quando criança em sua cidade, São Bento do Una/PE.
Em setembro de 1975, o Jornal de Música trazia uma matéria com o novo astro nordestino que começava a ganhar espaço na música brasileira, com sua síntese de música elétrica e nordestina, sem perder suas raízes. A matéria , assinada por Ana Maria Bahiana, é intitulada "O Taumaturgo Crazy do Nordeste":
"Eu não diria que Alceu Valença parece um hippie. Muito menos um astro de rock. Há alguma coisa tão mambembe, tão imprevista, tão improvisada em sua figura, em sua roupa de palco, que nem as botas de cano longo conseguem rockificar. Talvez seja a camisa cáqui, nada jeans, muito miveste, baratex. Talvez sejam as fitinhas coloridas presas na roupa, sem muita lógica, bonitas, parecem bentinhos de porta de igreja. O cabelo grande, sim, e a barba. Eu diria mais um taumaturgo crazy do Nordeste.
Alceu está resfolegando e molhado de suor depois do show. É desgastante, esse show. Ele pula o tempo todo, corre pelo palco, faz equilibrismos, dança. Pergunto onde ele tirou essas ideias. 'Menina, sabe que tem gente que pensa que eu tou doido quando faço isso? Mas não tou não. Eu faço sabendo mesmo, sentindo cada coisa. Foi tudo coisas que eu vi, que eu curto desde garoto. Isso de correr assim pelo palco, agitando os braços, isso não é novo não, não é nem de rock. Tinha um cantor palhaço, que se apresentava lá em São Bento do Una (Pernambuco, onde ele nasceu), que fazia isso mesmo. E mesmo Jackson do Pandeiro e Almira, lembra? Tinha aquela coisa de xaxado, mas já não era só xaxado, era uma estilização, vamos dizer assim, uma curtição em cima do xaxado mesmo.' A pergunta e a resposta - levantam o básico da música de Alceu. Aquilo que eu mesma chamei de 'circo eletrônico', de 'cantador de feira alucinado'. A síntese, afinal, a maldita e penosa síntese entre rock, eletricidade e música brasileira. Como foi isso, Alceu?
'Você se espanta porque na minha música está completo, não é? Pois é isso mesmo. Não foi algo que eu fiz deliberadamente. Eu simplesmente fui deixando entrar nos meus ouvidos, deixando acumular... Eu vivi com muita intensidade o repente, o rojão, os cantadores. Circo então nem se fala, adorava circo, aqueles bem caindo aos pedaços que chegavam lá em São Bento. Apesar de minha família ser até mais de classe média - meu pai é político, foi deputado na época da redemocratização de 46 -, lá numa cidadezinha como São Bento do Una não dá pra ter uma distância muito grande não.
Eu vivia no meio dos cantadores, ouvindo os improvisos. Porque é uma maravilha, não é? É puro exercício de estética, de retórica, puro exercício mental. Essas coisas meio bíblicas que estão saindo agora nas minhas letras, isso é deles, dos cantadores. Eles é que têm todo esse lado incrível de pôr citações da Bíblia, da mitologia, quimeras, dragões, Vênus, Apolo, o Gonzaga muito, demais, e já era outra coisa, uma estilização da coisa. E Ângela Maria, Caubi Peixoto, Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas. Eram as coisas que tocavam nos auto-falantes da praça de São Bento. Depois fui para o Recife, e lá já tomei contato com outra coisa, que é a música de litoral, os maracatus, as cirandas. Isso que eu anuncio como fado, a 'Borboleta', na verdade é uma ciranda do Recife, só que eu dou destaque ao lado português que existe dentro da ciranda, esse pseudo-fado. Nessa época eu comecei a ouvir rock, Elvis Presley, Ray Charles. Não fui atrás, de propósito. A coisa foi chegando e entrando no meu ouvido. E eu senti muito, porque achei muito parecido com as coisas que eu já conhecia e gostava, o rojão. Aquela choradeira do Elvis, por exemplo, aquele oh-oh-oh-oh, puxa, eu disse, isso é arretado igual violeiro, choradeira de violeiro, sabe como é? E depois, o Ray Charles, aquele blues em que as mulheres respondem lá atrás, bem alto, aquilo é igual cantoria, também. Então você vê como foi? As coisas foram chegando e se completando sozinhas, na minha cabeça. Inclusive hoje eu não gosto do que se faz muito no rock, não. Gosto de eletricidade, do baixo bem marcado, e isso eu uso. Gosto de Dylan, também é bonito. Mas parei muito de ouvir.'
Quando eu conversei com o Alceu, ele andava preocupado com as cadeiras vazias do seu show, no Teatro Tereza Rachel. Preocupado por causa dele, é claro, mas muito por causa dos músicos, que já haviam enfrentado barras-pesadas demais por causa dele. Alceu estava com um pouco de medo, mesmo. Hoje ele deve estar mais: o show encheu tanto de gente que simplesmente não conseguia encerrar a temporada. Mas a pergunta ainda cabe: como anda a barra pro lado dos novos, dos estreantes? Abertura, o festival, abriu alguma coisa?
'Abriu nada. Só em termos de ficar conhecido. Isso eu fiquei. Mas não ajudou muito a gente prosseguir, não. As mesmas coisas: mil promessas que não se cumprem. Falta grana pra aparelhagem, pra pagar o pessoal. A gente tem que se virar sozinho, e a barra pesa demais. Teve uma hora, quando a gente saiu do Recife pro sul, por conta própria, que a situação ficou muito preta. O grupo, que é muito unido, ficou até contra mim, entrou numa que eu estava usando eles. Quem não tinha família ficou no aperto mesmo, sem dinheiro nem pra comer. Aí a gente chega no Rio, no sul, e descobre que não tem aparelhagem direita, que não teve divulgação. Por isso é que eu já pensei em criar galinha. Mas criar galinha mesmo, que lá em São Bento do Una tem muita galinha dando sopa.' "
Tempos difíceis para o Alceu.
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