Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 31 de agosto de 2016

João Bosco e Aldir Blanc - Jornal de Música (1975) - 2ª Parte

" Um dia, descobriu que se sentiria melhor calculando a harmonia de um verso do que brigando contra os métodos e formas que considerava sediciosos à psiquiatria. E, compositor egresso dos festivais universitários, trocou o consultório no centro da cidade pela vida nada romântica do poeta que se expõe. E o complexo que soma hoje sua poética começou anos antes do seu atual parceiro, na efervescência mesma daqueles festivais, FICs e promoções congêneres. Naquele ambiente que era convite permanente à concessão, Aldir Blanc conseguiu manter a linha de comportamento/pensamento que julgava mais exequível para um compositor/poeta/artista dentro da MPB. E, quando veio Agnus Sei, as coisas começaram a mudar de uma maneira mais clara e consistente.
Carioca do Estácio, 29 anos, Aldir Blanc Mendes dividiu sua infância/adolescência entre aquele bairro e Vila Isabel, aprendendo as lições diretas da vida na rua, enquanto a escola lhe ministrava a chamada formação acadêmica. Sem apresentar nesta fase uma vocação decididamente forte, caiu na Faculdade de Medicina e Cirurgia, passando a se preocupar com outras coisas que não a vida marginal do Estácio, o jogo de sinuca, a pelada.
Antes de se decidir a deixar tudo pela música, Aldir passou por uma fase em que realmente tinha se apaixonado pela carreira universitária escolhida: durante os tempos em que trabalhou no sanatório de Engenho de Dentro, descobriu a utilidade de se lidar com os loucos, de dar uma sopa a um, um remédio a outro, se meter numa briga e, mais que tudo, descobriu que aquilo o fazia gente. Aos poucos, porém, já no próprio Engenho de Dentro, começou o desencanto até que Aldir chegou a uma decisão que acabou tendo um peso muito forte nas decisões que tomou a seguir: 'A medicina de hoje é uma viagem ao mundo dos doutores'. Quando fechou o consultório, a música tinha vindo antes, já como uma coisa forte e importante demais para ser contida, especialmente por um tipo de atividade que se avizinhava improvável em sua forma mesma de passar à prática.
 A música, repetindo, tinha vindo antes: a estreia fora no FIC de 1968, A Noite, A Maré e o Medo, parceria com Silvio Silva Júnior. Com César Costa Filho, veio o Universitário. E Aldir ficou em três dos cinco primeiros lugares: em segundo, Nada Sei de Eterno (com Sílvio); em terceiro, Mirante (com César) e em quinto, De Esquina em Esquina. Ao lado de Aldir vinha toda uma geração de compositores universitários. Hoje, Aldir entende o relacionamento direto daquela situação com que aqueles universitários tinham a lhes oferecer e com a chamada realidade: 'Vivíamos meio daquele negócio de festivais, de esperar um ano inteiro para mostrar uma música'.
Do Estácio, da infância, de Vila Isabel, tinha ficado principalmente o germe da música, do samba, do compositor: 'Me lembro que, no primário, quando ouvia o nome de Noel Rosa, aquilo tinha um peso muito grande, como se já fosse possível para mim ter uma visão naquela época da indiscutível grandeza dele. Quando rapaz, cantava os sambas de Geraldo Pereira, Wilson Batista e Ismael Silva pelos bares e as pessoas não entendiam mais, estavam em outra; Geraldo, Wilson e Ismael não faziam parte da moda'.
A tarde do domingo morno leva João Bosco do Jardim Botânico até a casa de Aldir Blanc, na Tijuca. Lá, nos encontramos  os três para uma cachaça especial vinda de Ponte Nova, Minas, terra de João. A amizade entre nós facilita a escolha dos assuntos. Mas, às vezes, compromete a qualidade, oportunidade e uma possível perspicácia nas perguntas. É difícil, pra mim, por exemplo, perguntar a João Bosco se o sucesso imprevisível (para as fábricas, para os 'donos' da verdade discográfica no Brasil) mudou alguma coisa em seu relacionamento com a máquina, com a vida, com as coisas, com os amigos. Mesmo assim, a pergunta sai e a resposta que ele dá, apesar de óbvia, clarifica bem as questões entre este sucesso e o seu comportamento, bem como a forma (ou não) de um interferir no outro.
- Não tenho um tipo de preocupação exata virada no sentido de me colocar, me posicionar diante disto. Acredito até que esta é a única maneira de me dispor a ter uma posição sincera. Se eu disser: vou fazer isso, vou fazer aquilo, já foi tudo pro brejo, já é mentira. O que me interessa realmente é que - sem nenhum esforço especial - eu continuo levando a minha vida de uma cachaça aqui, uma pelada ali; uma sinuca no Palheta, uma volta em Ouro Preto. Vou indo. Como sempre, sinto as mesmas coisas, tenho as mesmas posições e, mesmo quando a máquina estende seus tentáculos para me segurar eu sei exatamente o que penso dela, o que é o rádio, a gravadora, o disco, a imprensa, a televisão. Não mudou nada.
- Mas - provoco um pouco mais - é evidente que a partir do momento em que seu disco vende e você passa a ser considerado ponte de venda  da empresa, você fica numa espécie de compromisso de corresponder a este nível de expectativa. Como é que você encara isso?
- Não encaro, não me preocupo. É possível que haja alguma expectativa. Falo por mim, porém, não temos ainda a menor ideia de como vai ser o terceiro disco, se ele vai ou não deixar a RCA satisfeita, se vai atender ou não aos níveis de expectativa criados pela venda dos vinte mil discos agora.
- O terceiro elepê - Aldir se senta e pega o bonde meio andando, mas se equilibra no balaústre - será aquilo que o João for quando gravá-lo. Neste segundo disco, que surpreendeu, vendeu, deixou a RCA meio perplexa, os grandes técnicos de marketing da gravadora entraram pelo cano: eles achavam que a capa não podia ser aquela ('a capa sem foto é uma loucura'), acharam o disco desarrumado, acharam os arranjos dúbios, disseram que não ia dar pé. O fato é que é muito difícil colocar a culpa de 'ignorância da plebe ignara', que não vai entender, não vai sacar aquilo. Nós, sem entender nada de marketing, graças a Deus, quisemos do jeito que saiu. E vendemos 20 mil. Até agora.
A crítica, porém - faço a ressalva justamente para provocar uma resposta de Aldir - estabelece comparações, procurou unidades, etc.
- A crítica - a resposta foi imediata - tem que ser uma coisa relacional. O crítico deve perguntar também até que ponto ele mudou e as coisas mudaram a ponto dele perceber as mudanças do João. Fora disso, é a pose de dono da verdade, dono do bom gosto, dono da sensibilidade, reacionarismo cultural. Não admito, por exemplo, comparações entre Caça A Raposa e Kid Cavaquinho. Acho uma coisa imbecil. Uma é uma coisa, a outra é  outra. E ambas são a mesma coisa.
Levo, então, a conversa para o direito autoral. A entrevista de Aldir ao Pasquim provocou um desmentido da Sicam (*), mas Aldir não corre do pau:
- O Pasquim publicou o meu borderô. Então, só se subornei o computador deles. Note bem: o computador deles é que produziu aquele borderô. Se houve desmentido - eu nem vi nem tomei conhecimento até agora. - é uma mentira. E estamos aí para as devidas réplicas.
- E eu que nem seiscentos contos estou recebendo? - João descansa a cachaça na mesinha e toma a palavra - Não estou ganhando um tostão, há vários meses. E tenho algumas músicas bastante executadas.
A Sicam deixou há muito tempo de fazer parte das minhas estimativas econômicas de sobrevivência. Não penso mais naquilo. E nem procuro outra arrecadadora, embora tenha algumas propostas. Não aceito estas propostas por uma razão muito simples, seria a mesma coisa que aceitar minha expulsão. E aí não tem negócio, não tem acordo. É ponto de honra firmado: a Sicam não pode me expulsar por ter exigido uma prestação de contas. Dele, não recuo. O processo continua correndo. Enquanto não for homologada uma decisão, eu fico nessa. "

(*) Sociedade arrecadadora de direitos autorais à qual a dupla era afiliada
 

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