Esse blog, como quem acompanha ou eventualmente o lê sabe, tem como objetivo transcrever matérias publicadas sobre música em épocas passadas. Como há mais de 40 anos criei o hábito de ler, guardar e colecionar tudo que achava interessante sobre música, eu acabei criando um enorme acervo de matérias (e também fotos) que eu fui colecionando ao longo desses anos, e um dia tive a ideia de compartilhar esse material através desse blog. Em 2009, numa de minhas primeiras postagens, resolvi destacar uma edição bastante interessante da Veja, publicada em setembro de 1975, e que hoje pode ser considerada histórica, com uma capa antológica reunindo compositores de uma nova geração que surgia na nossa música: Fagner, Luiz Melodia, João Bosco e Walter Franco. A matéria traz muitas fotos, algumas das quais ilustrarão as postagens. Na época eu não costumava transcrever matérias muito extensas, preferindo extrair apenas os trechos que achava mais importantes. E assim fiz com a matéria sobre essa revista. Hoje, eu só transcrevo as matérias na íntegra, e se for o caso, divido em tantas partes quanto forem necessárias. Anos depois, essa capa chegou a circular em algumas páginas do Facebook e criou muito interesse e curiosidade entre as pessoas interessadas por essa fase tão rica de nossa música. Assim, atendendo ao pedido de um dos mais fieis leitores desse blog, o Getúlio Filho, eu irei transcrever a matéria na íntegra, dividida em algumas partes. Primeiramente irei transcrever o editorial da revista, assinada por alguém das iniciais M.C., em forma de "Carta ao Leitor":
"Registrava-se alguma euforia, na sexta-feira passada, na área da redação ocupada pelo pessoal de 'Artes e Espetáculos'. 'Enfim, uma reportagem de capa sobre a música popular brasileira', proclamava o editor Silvio Lancelotti. De fato, quase seis anos passaram desde a última, publicada no início de 1970. É verdade que, depois disso, alguns compositores mais significativos mereceram transformar-se em assunto principal de uma semana de Veja. Assim, Jorge Ben, Caetano Veloso, Chico Buarque de Hollanda, Maria Bethânia (que Silvio teima em chamar Iansã) e até veneráveis mestres-sambistas: Ismael Silva, Cartola e Mano Décio da Viola. Invariavelmente, porém, esses dignos representantes da MPB - mais uma sigla, neste momento fascinado por siglas - foram tratados de forma isolada e quase estanque, sem que se pretendesse um balanço, um panorama, um golpe de vista abrangente.
Por que isso aconteceu? 'Na verdade, em termos globais, não havia mesmo muito que falar', diz Silvio. E explica: 'Depois da explosão festivalesca que se seguiu à Bossa Nova, depois do Tropicalismo, a música popular brasileira se viu pesarosamente estagnada. Seus antigos astros, embora ainda jovens, silenciosamente tiveram de se afastar das plateias maiores. Alguns chegaram a se calar'. Contudo... Contudo, seguindo caminhos atormentados, eis que quase sete anos depois da Tropicália, alguns nomes novos mostram serviço. Agem, talvez, de maneira desajeitada e esparsa, de tal sorte que é difícil qualificá-los com precisão.
Nesta edição, Veja permite-se, a despeito dessa dificuldade em confeccionar rótulos e definir tendências, uma espécie de balanço, como há tão longo tempo não fazia. Consta que a última geração de autores (perdão, eles não gostam que se fale em geração) não exibe a quantidade estética de Nelson Cavaquinho ou a arte de Noel Rosa. É possível. No entanto, a música popular brasileira começa novamente a fazer sucesso. E sobrevive.
Em busca de provas de uma vitalidade reencontrada, o editor-assistente José Márcio Penido e o crítico Tárik de Souza há meses vinham analisando um vastíssimo material recolhido em todo o país, valendo-se do trabalho dos repórteres cariocas Lúcia Rito, Margarida Autran, Antônio Chrysóstomo e Joaquim Ferreira dos Santos, de Maria Helena Passos em São Paulo, Rejane Breta no Rio Grande do Sul e Gleizer Neves em Minas. E ao cabo de seu périplo por entrevistas, depoimentos e pesquisas, ainda que não pudessem anunciar a presença de um movimento fulgurante, pelo menos afirmavam ter detectado alguns talentos unidos por razoáveis propósitos renovadores e adequados ao severo e confuso dia de hoje - e pela fé na música popular. De João Bosco, mestre-sala dos mares, ao agreste e viril Belchior. Do agitado Fagner a Raul Seixas, viajante numa selva de palavras. E outros mais. Quatro deles, representando todos, aparecem na capa. Parecem-me agressivos e mansos ao mesmo tempo, um tanto surpreendentes nos seus papéis. E, eu juraria, surpresos de estarem onde estão.
É provável que haja discordâncias quanto à escolha. De minha parte, gostaria de ver na capa também Aldir Blanc, o impecável letrista das músicas de João Bosco, capaz de tornar épica a farofa e lírica a ponta de um torturante bandaid."
Abaixo, a primeira parte da matéria:
" Estava à toa na vida
O Meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
(Chico Buarque de Hollanda, 1966)
A meninada toda se assanhou. A moça triste, o homem sério, brasileiros do norte e do sul, de Brasília e de Salvador, aprenderam num instante a letra e a música. Unidos, formariam um fantástico coral de incalculável número de vozes, desencontradas e desafinadas, mas indubitavelmente capazes de atestar um raríssimo fato: a unanimidade nacional acolhia um novo tipo de música popular. E o povo passou a amar o garoto de olhos verdes, muito sem jeito no palco, aquele irmão, aquele filho, aquele genro, aquele amigo que qualquer um gostaria de ter.
O rádio tocava 'A Banda'. As revistas ilustravam e discutiam. Enquanto a televisão espalhava, mais e mais. As câmeras, porém, não mostravam apenas Chico Buarque de Hollanda. Os grandes musicais produzidos pela TV Record de São Paulo, para seu horário nobre, ofereciam variadíssimas atrações. Por exemplo, uma série de festivais anuais, como num comício. Torciam, como no futebol. E não estavam sós. Em casa, milhares de telespectadores com eles se identificavam. e as imitavam.
Muitos eram os chamados - e muitos os eleitos. Alguns preferiam a voz pequena e os decantados joelhos de Nara Leão. Outros se deixavam prender pelos braços de Elis Regina, cantora que parecia um helicóptero, tanto se mexia. Amava-se o canto sereno e seguro de Edu lobo, a força e o furor de Geraldo Vandré, o sorrisão de Jair Rodrigues. E também se odiava. Com gritos e vaias, a massa expressava sua antipatia. Que Sérgio Ricardo certo dia retribuiu, quebrando e jogando seu violão sobre as cabeças da horda implacável.
Reinava mais paz no colorido e eletrificado mundo da 'Jovem Guarda', outro programa da emissora, de público igualmente fiel e numeroso. Neste, mais um reino encantado que uma nação, imperava, sem concorrência significativa, a família real do rock brasileiro. No trono, glorioso, meigo, atrevido, Roberto Carlos, secundado pela princesinha Wanderléa e o valete Erasmo Carlos.
Seus súditos mandavam tudo para o inferno e os adoravam. Sem perceber que nos corredores e nos bastidores da Record, um baiano magro e cabeludo se mostrava disposto a provar que música também podia ser outra coisa.
Caetano Veloso chegou - e, ao contrário de Chico e Roberto, chocou. Suas roupas eram extravagantes. podiam ser cintilantes como as do Rei, mas revelavam a mesma liberdade e o idêntico à-vontade que recheavam suas letras e suas músicas. Cidadão de um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, ele, mais Gilberto Gil, inauguraram, no longínquo ano de 1967, o último movimento importante da música popular brasileira.
E do Tropicalismo para cá, o que aconteceu? Não brotaram mais grupos? Ninguém mais induziu a massa a cantar? Não existirão inovadores? Onde estão os novos?
Eles estão chegando. Do Ceará, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de São Paulo, da Bahia, do Espírito Santo. São os João Bosco, os Aldir Blanc, Luiz Melodia, Fagner, Belchior, Walter Franco, os Alceu Valença e os Raul Seixas, que não marcham mais em bandos, como antes. Estão na estrada, mas seu caminhar já não é documentado por câmeras de televisão - o horário nobre das TVs pertence irremediavelmente às telenovelas. Perambulam sós, sem qualquer apoio radiofônico. Os programas de rádio preferem o que vem de fora. Os críticos e o público exigem deles uma perfeição impossível para as condições em que vivem. E os novos acham um absurdo serem assim chamados, andarilhos de longa data. Como se a poeira comida na trajetória os envelhecesse. Como se as emboscadas para eles preparadas nas curvas do caminho os tivessem derrubado. Como se fosse possível apagar a música que criam. "
(continua)
Abaixo, a primeira parte da matéria:
" Estava à toa na vida
O Meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
(Chico Buarque de Hollanda, 1966)
A meninada toda se assanhou. A moça triste, o homem sério, brasileiros do norte e do sul, de Brasília e de Salvador, aprenderam num instante a letra e a música. Unidos, formariam um fantástico coral de incalculável número de vozes, desencontradas e desafinadas, mas indubitavelmente capazes de atestar um raríssimo fato: a unanimidade nacional acolhia um novo tipo de música popular. E o povo passou a amar o garoto de olhos verdes, muito sem jeito no palco, aquele irmão, aquele filho, aquele genro, aquele amigo que qualquer um gostaria de ter.
O rádio tocava 'A Banda'. As revistas ilustravam e discutiam. Enquanto a televisão espalhava, mais e mais. As câmeras, porém, não mostravam apenas Chico Buarque de Hollanda. Os grandes musicais produzidos pela TV Record de São Paulo, para seu horário nobre, ofereciam variadíssimas atrações. Por exemplo, uma série de festivais anuais, como num comício. Torciam, como no futebol. E não estavam sós. Em casa, milhares de telespectadores com eles se identificavam. e as imitavam.
Muitos eram os chamados - e muitos os eleitos. Alguns preferiam a voz pequena e os decantados joelhos de Nara Leão. Outros se deixavam prender pelos braços de Elis Regina, cantora que parecia um helicóptero, tanto se mexia. Amava-se o canto sereno e seguro de Edu lobo, a força e o furor de Geraldo Vandré, o sorrisão de Jair Rodrigues. E também se odiava. Com gritos e vaias, a massa expressava sua antipatia. Que Sérgio Ricardo certo dia retribuiu, quebrando e jogando seu violão sobre as cabeças da horda implacável.
Reinava mais paz no colorido e eletrificado mundo da 'Jovem Guarda', outro programa da emissora, de público igualmente fiel e numeroso. Neste, mais um reino encantado que uma nação, imperava, sem concorrência significativa, a família real do rock brasileiro. No trono, glorioso, meigo, atrevido, Roberto Carlos, secundado pela princesinha Wanderléa e o valete Erasmo Carlos.
Seus súditos mandavam tudo para o inferno e os adoravam. Sem perceber que nos corredores e nos bastidores da Record, um baiano magro e cabeludo se mostrava disposto a provar que música também podia ser outra coisa.
Caetano Veloso chegou - e, ao contrário de Chico e Roberto, chocou. Suas roupas eram extravagantes. podiam ser cintilantes como as do Rei, mas revelavam a mesma liberdade e o idêntico à-vontade que recheavam suas letras e suas músicas. Cidadão de um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, ele, mais Gilberto Gil, inauguraram, no longínquo ano de 1967, o último movimento importante da música popular brasileira.
E do Tropicalismo para cá, o que aconteceu? Não brotaram mais grupos? Ninguém mais induziu a massa a cantar? Não existirão inovadores? Onde estão os novos?
Eles estão chegando. Do Ceará, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de São Paulo, da Bahia, do Espírito Santo. São os João Bosco, os Aldir Blanc, Luiz Melodia, Fagner, Belchior, Walter Franco, os Alceu Valença e os Raul Seixas, que não marcham mais em bandos, como antes. Estão na estrada, mas seu caminhar já não é documentado por câmeras de televisão - o horário nobre das TVs pertence irremediavelmente às telenovelas. Perambulam sós, sem qualquer apoio radiofônico. Os programas de rádio preferem o que vem de fora. Os críticos e o público exigem deles uma perfeição impossível para as condições em que vivem. E os novos acham um absurdo serem assim chamados, andarilhos de longa data. Como se a poeira comida na trajetória os envelhecesse. Como se as emboscadas para eles preparadas nas curvas do caminho os tivessem derrubado. Como se fosse possível apagar a música que criam. "
(continua)
O ''Clube da Esquina'' não era considerado um movimento musical,estranho!
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