'No entanto, eles teimam. Isolados, dispersos, eles resistem. A união faz a força, mas, já que ela é impossível, cada um faz e toca seu trabalho com a autonomia de um cavaleiro no comando de sua montaria.
Assim age, por exemplo, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ou só Belchior, cearense de Sobral, 29 anos e 23 irmãos. Nunca teve grupo ou empresário. Ele diz que resolveu o problema da comercialização de sua obra através de um trabalho composto de viagens e de um violão. 'Onde eu chego, transo o som, local, pessoas. E canto'. Raimundo Fagner Cândido Lopes, outro cearense, de Orós, 25 anos incompletos, também agencia, ele próprio, sua carreira. Afinal, sua paciência com os mercadores da música terminou há muito tempo. Diz Fagner: 'Eu sou um cara que consigo as coisas porque vou lá e brigo. Não quero saber se tem secretária mandando eu não entrar, eu abro a porta, vou lá e pergunto qual é. Porque, quando você conversa com esses caras de gravadoras, parece que você está falando de laranja e banana. Os caras que mais odeiam música são os que trabalham com ela. A música brasileira está numa véspera, num quase. O sistema é que atrasa a explosão. Se derem vez às pessoas certas, aí o negócio estoura. Mas, do jeito que está, a gente só pode mesmo chegar no dono da gravadora e esculhambar, dizer que eles não estão sabendo de nada, esculhambar eles tudinho mesmo'.
O plano do raivoso Fagner é 'ganhar muito dinheiro, comprar minha gravadora e gravar quem eu quiser'. Se conseguir, certamente privará seus contratados de aborrecimentos, pressões e incompreensões que ele e seus companheiros de geração sistematicamente recebem, principalmente das companhias de discos. Assegura o capixaba Sérgio Sampaio, de 28 anos, autor de 'Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua', a explosão do Festival Internacional da Canção de 1972: 'Passaram a me exigir novos Blocos'. Antes disso, Sampaio fizera um inquietante LP com Raul Seixas, Edy Star, e Miriam Batucada, 'A Sociedade da Grã- Ordem Kavernista'. O disco se abria com uma banda de circo e se encerrava com uma sonora descarga de vaso sanitário. Não vendeu nem 500 cópias e mereceu, da CBS americana, uma carta dirigida à sua filial brasileira com uma única frase: 'O que está acontecendo?'
Mais que Sampaio, o paulistano Walter Franco, de 30 anos, autor de um único LP, 'recolhido antes de chegar às lojas', vem enfrentando implacável oposição. Com sua fala lenta, suave, quase tímida, ele não se mostra, porém, desesperado. Afirmou Franco a Antônio Chrysóstomo, de Veja: 'As coisas mais simples são as mais profundas - e vice-versa. Uma delas, uma das poucas certezas que tenho, é a de que os homens se dividem, desde os tempos não registrados pela História, em grupos e tribos. E existe uma, a tribo dos que caminham à frente da manada, dos que amam, dos que têm fé neles mesmos e em suas pequenas, infinitas descobertas. Essa tribo sempre foi necessária - e odiada. É a minha. Diminuta, composta de gente que pretende a harmonia, o belo, e que se nutre de amplos espaços, que os outros só ocuparão muito tempo depois'.
A monástica serenidade de Franco contrasta com o desabafo do palavroso baiano Raul Seixas, nascido, como gosta de lembrar, no mesmo dia e hora em que a bomba atômica caía sobre Hiroxima, em junho de 1945. Raulzito está gravando um novo LP, 'Caminhos' (*), de messiânicas intenções. 'Eu não me tranco em hermetismos para benefício do meu ego. Quero abrir. Falar claro, objetivo, como tenho feito, porque as pessoas hoje em dia andam de cabeça muito baixa, estão necessitando de caminhos novos. Existem várias, várias saídas. Porque se não existissem, eu daria um tiro na cabeça. Eu dou aberturas, alternativas, eu sou.'
O mais popular dos atuais autores brasileiros, com cerca de 300.000 discos vendidos em dois anos, Raul Seixas, fundador do primeiro grupo de rock da Bahia, Os Panteras, mantém-se ainda hoje fiel ao ao ritmo que o inflama desde a adolescência. 'Para mim, o rock sempre foi um comportamento, uma revolução social o espelho social de uma época. Ele era pra mim toda uma maneira de ser, de vestir, de falar. Na faculdade de filosofia, o pessoal me chamava de entreguista por eu gostar de rock. Pensavam que era só uma dança de americano. Na verdade, é algo revolucionário que originou os Beatles, os hippies, um insight cósmico inevitável'.
O rock também permanece nas origens de João Bosco de Freitas Mucci, mineiro de Ponte Nova, 29 anos. Em 1958, ao ouvir 'um cara muito louco chamado Little Richard', ficou 'inteiramente alucinado'. Já tocava violão e logo partiu para um conjunto, o Charme Boys. A paixão só arrefeceu quando se mudou para Ouro Preto e ouviu falar da Bossa Nova. Na velha cidade, 'um lugar lindo mas muito pesado', conheceu um dia Vinícius de Moraes. 'Era birita, violão e música noite adentro.' Com ele chegou mesmo a compor uma inédita canção. E graças ao poeta, aproximou-se de Tom Jobim, que além de escrever a contracapa de seu primeiro LP, lançou o novato nos extintos Discos de Bolso do jornal O Pasquim. Formando uma dupla invariavelmente feliz com o carioca Aldir Blanc, Bosco penetrou na boca do povo através da irretocável gravação, por Elis Regina, de 'Dois pra Lá, Dois pra Cá'. E não parou. Atualmente, composições como 'Kid Cavaquinho' e 'O Mestre-Sala dos Mares' chegam muitas vezes a sobrepujar, na programação das rádios, a enxurrada de fitas originais importadas. 'Eu e João estamos juntos no gole de cachaça, na arquibancada, no salão de sinuca', diz Aldir Blanc.' Admiro sua simplicidade, a busca de algo puro, não no sentido ingênuo, mas a busca do que a vida tem para mostrar e é preciso aprender.'
Com suas criações trabalhadas por diversos cantores, João Bosco pensava poder viver de seu trabalho musical. Curiosamente, porém, os direitos autorais arrecadados pela Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais - SICAM - sempre lhe pareceram minguados demais, desproporcionais ao sucesso que rádio e discos atestavam. Ele então exigiu que a SICAM lhe permitisse conferir pessoalmente as contas. 'Tinha alguma coisa errada. Ao pedir a revisão, porém, fui sumariamente expulso da Sociedade.'
Sérgio Sampaio ilustra o descalabro reinante na arrecadação de direitos autorais. 'Você sabe que, se eu romper com as SICAM, a minha arrecadadora, paro de receber os royalties da vendagem e da execução de 'Bloco na Rua'? Dizem que esse dinheiro vai para um certo bolo que é rateado entre os compositores que permanecem. Quer dizer: eu estou recebendo a grana de todos aqueles autores que saíram de lá. Se eu soubesse o que ganho deles, devolvia a quem de direito. Mas nem isso sei.'
De fato, 'é um mistério na mão de poucos', sentencia Luiz Gonzaga Nascimento Júnior, carioca, 29 anos, filho do Rei do Baião. Um dos diretores da Sombras, entidade recém-criada para lutar pelos interesses dos artistas ligados à música popular, Gonzaguinha exemplifica a escandalosa situação. 'A arrecadação de direitos autorais no Brasil inteiro é equivalente ao coletado só na cidade de Buenos Aires.' Outras garras afiadas, porém sempre perseguiram Gonzaguinha. O programador de uma rádio lhe explicou por que seus discos não eram executados. 'Suas letras são longas, difíceis.' A imagem na televisão também não agradava aos produtores. 'Você é muito parado, usa roupas sérias. Não dá pra sorrir um pouco, mesmo no final da música? Afinal, você é jovem.' Não bastasse tudo isso, contou ele a Joaquim Ferreira dos Santos, de Veja, ainda sofre outro tipo de solapamento. Bilhetinhos e telefonemas são recebidos nas salas dos programadores das rádios, aconselhando a não execução de suas obras.
Idênticas queixas manifesta Luiz Carlos dos Santos, o Luiz Melodia, carioca do Estácio, 24 anos. Fala mansa, mexendo de vez em quando no boné de feltro marrom que usa constantemente, Melodia viu seu disco 'Pérola Negra' desaparecer milagrosamente das lojas. Trocou a gravadora Phonogram pela Som Livre e prepara novo LP. 'Queria apenas poder gravar sempre e que todos entendessem a música. Mesmo se um dia eu perder a audiência, queria ter alguém pra me ouvir cantar. Sou um criador sério e por isso mereço respeito.'
Com tão precários e ineficientes métodos de divulgação, entretanto, Melodia, como os companheiros de geração, dificilmente conseguirá se fazer ouvir por grupos menos acanhados que os formados hoje por seus admiradores. No entanto, embora poucos, são entusiastas. Como o maestro e compositor Guto Graça Melo. 'As músicas de Melodia são muito fortes, pois extremamente pessoais. No panorama atual da música brasileira, ele não apresenta semelhança com ninguém.'
Elogios, aliás, não faltam a nenhum dos novos compositores. Elis Regina, deslumbrada com o talento de Belchior, declara: 'Belchior não faz nada por fazer, não vive de paetês e lantejoulas, e descreve muito bem a exploração do nosso subdesenvolvimento cultural. Estou impressionadíssima e apaixonada por sua música. Estou selecionando músicas de novos compositores para meu próximo LP e confesso: é a primeira vez, em três anos, que não enfrento o problema de falta de material'. Nara Leão, que já gravou composições de Fagner, explica porque. 'Gosto dele, pois, sem perder seu acento, sua nordestinidade, ele consegue ser moderno, entendido em qualquer lugar, por todos.' Gal Costa, intérprete de Walter Franco, reconhece: 'Ele tem um trabalho meio difícil para o grande público, mas as coisas começam a ficar mais claras agora. Começam a entender que Walter Franco é um barato'. O maestro Júlio Medaglia endossa: 'Num país carente de música instrumental, Franco é um quixote como o suíço-baiano Walter Smetack ou Hermeto Pascoal. É o não-músico mais musical do país. Numa terra de rouxinois como esta, estou mais interessado na música impopular brasileira, nos cantadores do interior da Bahia. E em Walter Franco. Um maldito que espalha sua filosofia através da música, mesmo que ninguém o siga'. Wanderléa completa: 'Apesar da impressão de difícil, o trabalho de Walter é direto e fácil. Por isso resolvi gravar 'Feito Gente', que ele me confiou e acabou virando nome de meu show, onde estou inteira' "
(continua)
De fato, 'é um mistério na mão de poucos', sentencia Luiz Gonzaga Nascimento Júnior, carioca, 29 anos, filho do Rei do Baião. Um dos diretores da Sombras, entidade recém-criada para lutar pelos interesses dos artistas ligados à música popular, Gonzaguinha exemplifica a escandalosa situação. 'A arrecadação de direitos autorais no Brasil inteiro é equivalente ao coletado só na cidade de Buenos Aires.' Outras garras afiadas, porém sempre perseguiram Gonzaguinha. O programador de uma rádio lhe explicou por que seus discos não eram executados. 'Suas letras são longas, difíceis.' A imagem na televisão também não agradava aos produtores. 'Você é muito parado, usa roupas sérias. Não dá pra sorrir um pouco, mesmo no final da música? Afinal, você é jovem.' Não bastasse tudo isso, contou ele a Joaquim Ferreira dos Santos, de Veja, ainda sofre outro tipo de solapamento. Bilhetinhos e telefonemas são recebidos nas salas dos programadores das rádios, aconselhando a não execução de suas obras.
Idênticas queixas manifesta Luiz Carlos dos Santos, o Luiz Melodia, carioca do Estácio, 24 anos. Fala mansa, mexendo de vez em quando no boné de feltro marrom que usa constantemente, Melodia viu seu disco 'Pérola Negra' desaparecer milagrosamente das lojas. Trocou a gravadora Phonogram pela Som Livre e prepara novo LP. 'Queria apenas poder gravar sempre e que todos entendessem a música. Mesmo se um dia eu perder a audiência, queria ter alguém pra me ouvir cantar. Sou um criador sério e por isso mereço respeito.'
Com tão precários e ineficientes métodos de divulgação, entretanto, Melodia, como os companheiros de geração, dificilmente conseguirá se fazer ouvir por grupos menos acanhados que os formados hoje por seus admiradores. No entanto, embora poucos, são entusiastas. Como o maestro e compositor Guto Graça Melo. 'As músicas de Melodia são muito fortes, pois extremamente pessoais. No panorama atual da música brasileira, ele não apresenta semelhança com ninguém.'
Elogios, aliás, não faltam a nenhum dos novos compositores. Elis Regina, deslumbrada com o talento de Belchior, declara: 'Belchior não faz nada por fazer, não vive de paetês e lantejoulas, e descreve muito bem a exploração do nosso subdesenvolvimento cultural. Estou impressionadíssima e apaixonada por sua música. Estou selecionando músicas de novos compositores para meu próximo LP e confesso: é a primeira vez, em três anos, que não enfrento o problema de falta de material'. Nara Leão, que já gravou composições de Fagner, explica porque. 'Gosto dele, pois, sem perder seu acento, sua nordestinidade, ele consegue ser moderno, entendido em qualquer lugar, por todos.' Gal Costa, intérprete de Walter Franco, reconhece: 'Ele tem um trabalho meio difícil para o grande público, mas as coisas começam a ficar mais claras agora. Começam a entender que Walter Franco é um barato'. O maestro Júlio Medaglia endossa: 'Num país carente de música instrumental, Franco é um quixote como o suíço-baiano Walter Smetack ou Hermeto Pascoal. É o não-músico mais musical do país. Numa terra de rouxinois como esta, estou mais interessado na música impopular brasileira, nos cantadores do interior da Bahia. E em Walter Franco. Um maldito que espalha sua filosofia através da música, mesmo que ninguém o siga'. Wanderléa completa: 'Apesar da impressão de difícil, o trabalho de Walter é direto e fácil. Por isso resolvi gravar 'Feito Gente', que ele me confiou e acabou virando nome de meu show, onde estou inteira' "
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(*) O disco, depois teria seu título trocado para 'Novo Aeon'
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