"Cantar insolente – A mesma sensação de
uns anos atrás, 68-69, quando Janis Joplin, Summertime, Aretha Franklin, James
Brown quebram uma visão perfeccionista do canto de João Gilberto. Além, é
lógico, da saída de Caetano e Gil do Brasil. Naturalmente, a ruptura do
perfeccionismo herdado de João, a busca do novo, embora sem a visão crítica do
seu trabalho naquele momento, terminam com um encontro com Macalé e novas
experiências. ‘Eu me juntei a Macalé e comecei um trabalho novo. Meu Nome É Gal, meu segundo disco, é a
marca da minha personalidade como cantora. Foi um disco completamente
experimental. O cantar é gritado, agressivo. Pode, inclusive, ser considerado
mal feito para as pessoas que tenham um ouvido como eu tinha. Mas, foi a fase
onde realmente eu comecei a ter uma marca. E, a partir daí, começou uma ligação
muito forte com a juventude. A coisa de jovem, de garotada.’
Hoje a
reaudição provoca na própria Gal classificações como um cantar insolente,
louco, agressivo e irreverente. Mas, de qualquer forma, válido. Mais: coerente com
a nova visão, a nova proposta de trabalho. Uma quebra, inclusive, com o disco
anterior, ‘Divino Maravilhoso’ (68), onde músicas de Roberto Carlos, Jorge Ben
e do próprio Caetano garantem índices de boa vendagem. E, acima de tudo, a
validade, a necessidade de uma opção consciente.
‘O segundo
disco (69) vendeu bem menos que o primeiro. Eu sabia que isso ia acontecer.
Mas, foi importante pra mim como realização. Mais correto comigo mesma. E mais
importante. Graças a esse trabalho, eu acho que sou Gal Costa na música
brasileira. Era um disco que eu considero corajoso.’
Inquestionavelmente,
o precursor da juventude, do colorido, do imenso ritmo do show ‘Fatal’ (71),
quando o desembaraço e os primeiros indícios da nova imagem retratam seguras
descobertas: o palco, o corpo no espaço, os gestos, e o próprio canto, solto,
livre e sujo. Uma imagem forte, marcante, onde ‘eu descobri as minhas
possibilidades como presença, como mulher. Transar o corpo e me soltar com uma
imposição mais segura, mais direta pro público. Era uma coisa apaixonada, onde
eu cantava coisas emocionais, de arrebatamento, de paixão. E descobri isso tudo
sozinha.’
Tudo de mentira – Persuasiva
argumentação, sem dúvida, para uma declaração de resistência à televisão,
embora um incisivo ‘eu não gosto’ atraia, rapidamente, explicações como a
frieza do trabalho, a americanização e a perfeita produção calcada no
infindável ‘anda-pra-lá-anda-pra-cá. Você canta e sente tudo de mentira’.
A oportuna
abertura a novos públicos aliada à farta divulgação do trabalho terminam,
porém, em insinuantes alternativas e ‘faço pelo menos uma vez por mês’.
Dessa forma,
‘Fantástico’ e ‘Parada de Sucesso’, embora donos de palpáveis pontos no Ibope,
perdem para o ‘Globo de Ouro’, ‘porque é mais bacana de fazer. Tem uma garotada.
Eles chamam uns estudantes. É legal, é importante para divulgar o trabalho da
gente’. Naturalmente as trilhas de novela assumem o papel do adequado
termômetro na vendagem dos discos. ‘Foi usada uma faixa, ‘Só Louco’, pela TV
Globo na novela ‘O Casarão’, e eu achei positivo para o meu trabalho. Promove o
disco.’
E exatamente a
mesma televisão, há 10 anos retrata as vaias aos nomes de Caetano Veloso,
Gilberto Gil e os cabelos revoltos de Gal. ‘Divino Maravilhoso’ assume, então,
a ruptura ao bossanovismo, a perfeição e o idealismo sempre procurados.
Parecia baião – Curiosas transformações
aconteceram nessa época. João Gilberto e Janis Joplin passam a compartilhar,
lado a lado, a condição de ídolos. ‘Eu era fascinada por João Giberto, e quando
Janis Joplin gravou ‘Summertime’, fiquei louca por aquela mulher. Achei
genial.’ Aretha Franklin, James Brown, à princípio, unem-se, mais tarde, a Sly
& The Family Stone, a Joan Baez, The Who, Jethro Tull, e, principalmente, a
Jimi Hendrix, numa expressiva amostra pop, ouvida, quase toda, no Festival da
Ilha de Wight, na Inglaterra. ‘De todo mundo, quem mais me impressionou foi
Hendrix. Quando ele tocava parecia baião. Foi uma coisa impressionante.’
Além, é
lógico, do esperado encontro em Londres com Caetano, Gil, Dedé e Sandra, amigas
de infância, de clubes, de brincadeiras. E indiretamente responsáveis pela
descoberta de Maria da Graça por Caetano. Num encontro no ‘Bazar’, reduto de
intelectuais e artistas de Salvador, Caetano ouve os primeiros versos de
‘Vagamente’, junto à confissão de incontida admiração por João Gilberto.
Resultado: até hoje Gal é a sua cantora predileta.
Admiração, por
sua vez, compartilhada também por Gilberto Gil, para quem ela ‘é a cantora que
eu mais gosto, a que transmite mais profundamente uma medida de um ser doce e
meigo, dentro do que eu busco como equilíbrio para uma mulher’. Um profetizante
resultado, portanto, para a mãe Mariah que, grávida, ouvia diariamente, em
profunda concentração, uma hora de música clássica, ‘o que deve ter me influenciado’.
A adolescência
ao som de Dalva de Oliveira, Anísio Silva, Luiz Gonzaga, os acordes do primeiro
violão antecipam João Gilberto, ‘o cara que me abriu a cabeça. A partir daí, eu
fiquei empolgada. Ele me ensinou muita coisa, eu tenho muita coisa dele na
maneira de cantar. Só agora quebrei isso’.
‘Nós, Por
Exemplo’ e ‘Velha Bossa Nova, Nova Bossa Velha’, em 64, no Teatro Vila Velha,
Salvador, junto a Caetano, Gil, Bethânia, o pianista Perna Fróes, o percussionista
Djalma Correa e o compositor Tom Zé, animam os músicos amadores. Mais tarde,
quando Bethânia substitui Nara Leão no show Opinião, ‘começou a história da
gente como carreira musical’.
Mesmo assim, o
perfeccionismo ao cantar a estreita amizade entre Caetano e Bethânia, já com
sucesso, não parecem argumentos convincentes para as gravadoras, ‘na verdade eu
não tinha convite nenhum pra cantar.’ ‘Arena Canta Bahia’ e ‘Tempo de Guerra’,
em São Paulo, peças dirigidas por Augusto Boal, intercaladas por idas e vindas
à Bahia e um compacto na RCA, sem sucesso, marcam um início não muito
promissor. Situação modificada, no entanto, no Primeiro Festival da Canção, com
‘Minha Senhora’, de Gil e Torquato Neto. Um contrato com a Philips e ‘Domingo’,
um elepê com Caetano (67), estreia de ambos, são os passos seguintes.
‘No começo foi
tudo deslumbrante. A gente tinha fascinação por música e tava cada vez mais
próximo da realização disso. Mas, ao mesmo tempo, existia um cuidado muito
grande para não se jogar inteiramente nesse deslumbramento e manter uma integridade
como pessoa. Nesse disco, tem toda uma linha gilbertiana, eu e Caetano
cantávamos como João. Eu cantava sozinha algumas faixas e Caetano outras.’
Dez anos
depois, as personalidades são isoladas, as carreiras e sucessos individuais
momentaneamente interrompidas, e Caetano, Gal, Gil e Bethânia apresentam uma
nova proposta, um grupo, os ‘Doces Bárbaros’, onde a música ‘O Seu Amor’, uma
vocalização dos quatro, reflete o clima de amor no palco ‘talvez a coisa mais
importante do trabalho’. E onde Gal significava a voz do grupo, confirmando,
portanto, as palavras de Caetano: ‘Gal participa dessa qualidade misteriosa que
habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar
o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de
quem relembra velhas musiquinhas.’ “
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