Em 1977, a revista
Música trouxe uma boa matéria sobre Gal Costa, onde são relatados vários fatos
de sua carreira, e tem vários de seus discos e shows comentados. O texto é
assinado por Maria Cecília:
“Em 1973, o
cenário do show-business brasileiro é bafejado por ares inovadores e sensuais.
E um espetáculo, cujo carro chefe é uma antiga guarânia, até então sinônimo de
mau gosto, passa a atrair a atenção da crítica especializada, dos espectadores
mais afoitos e dos menos interessados. Uma nova imagem delineia-se no palco,
onde a boca rasgada e generosamente vermelha disputa com as pernas bem
torneadas os ávidos olhares dos antigos e recém-conquistados fãs.
Pudico invólucro – Hoje, no limite do
décimo-primeiro ano de carreira, Maria da Graça Costa Pena Burgos, 31 anos,
reconhece a importância e o inusitado de ‘Índia’.
Assim, uma
complexa fusão do natural arrojo de Caetano Veloso ao sugerir a guarânia e os passos
de dança, a elaborada direção musical de Gilberto Gil somam-se à inclusão do
hábil sanfoneiro Dominguinhos num salutar resultado forró-funk. ‘Era um show
com detalhes de sons, como os tímpanos e a percussão. E muito rico visualmente.
Além disso, o meu canto era muito bem feito. Eu dançava pela primeira vez, e eu
mesma me dirigia no palco.’
A surpresa,
contudo, não se restringe ao show. E, no disco, uma capa dupla apresentava uma
Gal/Índia seminua. Naturalmente, a censura veta e um pudico invólucro de
plástico preto passa a esconder, e, por isso, a atrair nas lojas de disco a
ânsia da imagem. ‘Eu não gosto muito daquela capa. Fiz as fotos e viajei em
excursão pelo norte e sul. Quando voltei já estavam prontas, e a Philips me
pressionou para que o disco saísse. Eu resisti à princípio, mas depois concordei.
A ideia da capa é muito boa, mas foi mal realizada. O show, eu adorava.’
O disco, por
sua vez, também não conta com uma aprovação irrestrita. A excursão marcada e
consequentemente uma época agitada, difícil, explicam a pressa desse trabalho,
‘um disco no sufoco’.
A imagem
adquirida a partir daí, entretanto, é rigorosamente cultivada. A magreza,
graças à macrobiótica, os cabelos armados e soltos, a boca fortemente vermelha,
o som funk, ao lado da envolvente sensualidade, formam ingredientes
indispensáveis ao fiel público: a juventude. ‘A sensualidade é uma coisa muito
brasileira e bacana. Eu sou um símbolo no Brasil, porque sou uma pessoa
sensual. E ligo muito música à sensualidade. Me sinto sensual quando canto.
Isso já é da minha alma, é inevitável. É muito bom porque as pessoas nos shows
podem procurar a mulher, a coisa do sexo, a cantora que canta bem e a pessoa
louca. A cantora ligada à juventude, o cabelo desalinhado.’
Ceder demais – Na verdade, um fato real
e acima de tudo instintivamente cobrado. As reações em ‘Cantar (74), um
espetáculo calmo, perfeccionista, à semelhança do trabalho com João Gilberto,
e, exceção à regra, exibindo Gal um discreto vestido rosa, recebe de forma
unânime comentários lamentosos. ‘Mas eu fiquei contente. Era um show lindo,
muito musical. As pessoas reclamavam porque eu estava muito queita. E escondia
um lado meu, que acham qualidade. O meu corpo. Reclamações, no entanto,
benvindas, ‘pois fugir um pouco daquela imagem é quebrar um compromisso, de
certa forma já esperado, e não convém ceder demais’.
Exatamente o
mesmo posicionamento que orienta a escolha do repertório. Além da própria Gal,
pessoas amigas e o empresário Guilherme Araújo têm também livre acesso às
sugestões. O melhor exemplo é o elepê ‘Cantar’.
Produzido por Caetano
Veloso, revela nas músicas, nos arranjos, uma visão dele próprio sobre a
cantora e intérprete. ‘Cantar foi feito emocionado, bem cantado, liso.
‘Canção que Morre no Ar’ é uma faixa que me emociona. Esse disco é uma coisa
que eu tenho. Eu sei emitir a voz com perfeição, com clareza, com afinação, num
timbre bonito. E na hora que eu quiser. Mas tem o outro lado importante, que é
o cantar emocionado, sujo, onde a nota sai desafinada, mas a emoção canta
também. Um lado mais animal, impulsivo, que eu acho um barato. E que eu também
tenho. Foi um trabalho que me enriqueceu como intérprete.’
Subir e descer oitavas – ‘Cantora,
cantora mesmo é Gracinha. Cantora para dar aquele tom certo, cantora é mesmo
Gracinha.’ (João Gilberto)
A entusiástica
afirmação do grande ídolo, mestre, como ela própria costuma definir,
capitaliza, e ao mesmo tempo esbarra em marcantes características ditadas,
acima de tudo, pela emoção. A naturalidade, e a espontaneidade substituem,
dessa forma, apuradas técnicas didáticas. Eu tenho uma técnica natural de
colocar a voz. Já nasci com isso. A respiração é uma técnica natural minha. O
fato de segurar a respiração, a fim de a emissão ficar ou não mais longa, e
subir ou descer oitavas, é espontâneo para mim’. Hoje, contudo, a experiência traz
uma conscientização maior, ‘eu já faço feito’.
O que não
significa, entretanto, uma placidez e constância inabaláveis a situações e
climas musicais. Gravar em estúdio, por exemplo, não era, até a pouco, uma
situação encarada com satisfação. ‘Eu gosto de movimento, de emoção. O estúdio
é muito limitado. Mas agora, com ‘Gal Canta Caymmi’ (76), eu aprendi a gostar
de estúdio. Aprendi a ter a espontaneidade necessária e descobri como ficar
relaxada, despreocupada. A incorporar esses dados ao trabalho em estúdio. Hoje
eu gosto de gravar.’
Marcantes
alterações, no entanto, somam-se ao mero trabalho de estúdio. E mesmo o fato de
Caymmi, um compositor mais velho, ser o responsável por toda a seleção,
contraria uma discografia onde normalmente autores clássicos unem-se a
elementos novos como Luiz Melodia, Carlos Pinto e Péricles Cavalcanti. Dessa
forma, Hermínio Belo de Carvalho tem sua coleção de discos de Caymmi solicitada
e, durantes seis meses, audições diárias e uso do violão conseguem a solução
ideal. ‘Só faço esse disco se puder incorporar nesse trabalho uma linguagem
nova, a imagem do meu trabalho. Canto samba, eu boto funk e mudo um pouco o
ritmo da música. E isso foi feito. Tem a minha mão em tudo. Na escolha total do
repertório, na realização musical e até na escolha da capa. Eu não sou
arranjadora, mas transmito para o músico o que imagino, o clima para cada
música. Perinho Albuquerque, o arranjador, fez tudo como eu quis. Então é um
disco muito meu.’
Cuidadosas
elaborações e o fortalecimento como personalidade aliam-se a inovadoras
situações: surge uma nova cantora. ‘Quando eu me ouço cantando, parece uma
pessoa nova. A emoção, o jeito de dizer as palavras. Eu acho que a palavra é
mais valorizada que a música. Eu sempre tive uma ligação com a música em termos
de música pura mesmo. A emoção, a palavra traduzindo a carga de emoção, era
menos acentuada. E mesmo o dizer as palavras é mais claro, mais firme, mais
maduro. Como a forma de sentir, de cantar, de dizer as coisas. A minha postura,
na época, era nova. O olho era diferente.’ "
(continua)
Eu prefiro a Gal de estúdio.
ResponderExcluirAs gravações de estúdio são mais elaboradas, e o trabalho do produtor é mais valorizados, mas um bom disco ao vivo capta a emoção do show
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