Em 1975 Walter Franco lançava o excelente disco Revolver. A revista Rock, a História e a Glória em sua edição nº 13 trazia uma matéria com Walter, falando sobre o lançamento, que ainda não tinha acontecido, mas estava próximo. O texto é assinado por José Miguel Wisnik:
"Na capa de Revolver, Walter Franco vem só atravessando a rua. As luzes deixaram São Paulo meio esverdeada no escuro. As mãos no bolso do paletó branco, tênis branco, ele vem atravessando a rua, parecendo John. Mas ele vem de frente, e a fila indiana de Abbey Road pode estar vindo, pode ser todo mundo, quem quiser. ('Pode/ pode ser/ pode ser não/ pode ser não é'). Revolvendo tudo o que aprendeu, os Beatles, João Gilberto, o partido-alto ('Partir do alto' é o nome de uma das músicas), fazendo triângulos com música. A foto da capa ficou numa posição oblíqua, formando pirâmides de todos os lados. Tem também alguns sinais em braile: 'O que está escrito no centro é pra fazer sorrir um cego, ou fazer sorrir qualquer pessoa que enxerga na ponta do dedo, no toque frágil'. Pra ouvir com o olho, com o tato.
Mostrando as provas da capa do seu segundo LP, Revolver, Walter Franco vai sugerindo uma série de intenções, ou de relações que ele mesmo descobre de repente. 'Não tem nenhum segredo, mas tem muito mistério'. Quem viu a cara do seu primeiro disco (em que ele não mostrou a cara) certamente ficou perplexo por um momento com aquele álbum completamente branco, uma mosca no centro da capa, um 'ou não' escrito no centro da contracapa. Agora, em Revolver, Walter chegou a adiar o lançamento do disco para que todos os detalhes saíssem perfeitos: a foto, o encarte, os textos, uma janela que depende de uma das facas especiais para cortar e imprimir. Desde as ideias da capa, Walter retoma e transforma o seu disco anterior. Não falta o que descobrir, por dentro e por fora.
Me deixe mudo, feito gente, muito tudo. Ele prefere falar por música, com o violão, comentando as faixas de seu disco, as faixas do som, as frequências, as cores das fotos. Por isso pode parecer que é um cara que fala pouco, mas na verdade é porque tem um cuidado quase ritual com as palavras e as pessoas, e porque gosta das duas, como diz no disco.
Quando começamos a pensar numa entrevista, há três meses atrás, Walter ainda estava se preparando para começar a gravar, e dizia que queria testar a sua produção com os recursos do estúdio, 'se exercitar, filtrar, essa coisa de João (Gilberto): o filtro do filtro'.
Realmente, sem perder a identidade, as músicas passaram também por uma verdadeira transformação depois das 200 horas de trabalho no estúdio. Rodolfo Grani Jr. (baixo), 'o braço direito' e Diógenes Burani de Grado Filho (bateria), 'o braço esquerdo' fizeram com Walter os arranjos, mais Emilio Carreira (teclado), Dudu Portes de Souza (percussão), Luiz Paulo (sintetizador e sinfonizador, com seus 'platillos voladores'), Toni Osanah (flauta). Peninha Schimidt, assistente de produção e diretor de gravação, funcionou como uma espécie de intérprete de Walter junto aos técnicos de estúdio, transmitindo em linguagem técnica as suas intenções nas complicadas manobras de som.
'No estúdio é importante manter o registro da coisa no ato, o tempo individual da gravação. Coisas definidas antes e coisas acontecendo no momento. A palavra exata é sim: cantando essa frase num show, eu cheguei uma vez a um grito primal, cantando com o corpo inteiro, dos pés à cabeça, irmão. A gente nunca sabe até onde a coisa pode acontecer, e nem se pode repetir. Precisar no registro essa coisa que acontece quando se está no momento de criação, sem molduras. É claro que com o arranjo, o polimento posterior, a coisa pode ganhar, ficar mais bonita, mais elástica, mas perde na pulsação, na presença, nessa coisa de momento, que eu chamo de rock'.
Feito gente!: Com essas palavras, faladas, começa o disco e depois delas a música: 'feito gente/ feito fase/ eu te amei/ como pode/ fui inteiro/ fui metade/ eu te amei/ como pude'. O andamento, a contagem do ritmo é sempre igual, mas a pulsação muda, o tempo parece se distender, se acelerar, se contrair, se relaxar, feito fase.
O tempo: 'Uma faixa que deu trabalho na gravação foi Apesar de tudo é muito leve, que dura 5 segundos. É só esta frase (que faz parte de Muito tudo) cantada uma vez, a voz-sorriso, a respiração. No meio tem uma pequena inspiração, uma implosão. Eu fui na Praça de Sé assistir a implosão daquele prédio, o Mendes Caldeira. Na hora foi tão rápido que eu me lembrei dessa música. Ela podia ser a música-tema da implosão, aqueles cinco segundos (e não nove como disseram porque a queda mesmo foi mais rápida), a implosão, a força condensada, o apesar de tudo é muito leve...'
'Pra mim a música tem que ser polarizada para uma definição em termos de vida do que com a música em si. Um exercício de harmonia , de prazer, de passar um prazer para o outro, e manter o equilíbrio. Pingue-pongue. Se você sorrir para mim como o seu olho eu posso sorrir pra você com o meu olho. Eu me preocupo em usar o som como uma transação de cura, onde todos precisam ser curados'. ('Me lembro do Gil: 'quem tem cara/ tem cura' e do 'Toque frágil' do disco de Walter Franco: 'o sorriso/ do cachorro/tá/ no rabo', com o coro, as duas baterias, as vozes sorrindo, rindo à solta, tudo mixado e curado pela infância, pelo amor/humor).
Pergunto a Walter onde ele aprendeu a usar os recursos de estúdio, os canais, a mixagem, porque logo no primeiro disco ele já saiu dominando tudo isso. Ele diz que como trabalhou em rádio (em 67 tinha um programa na rádio Marconi chamado "Marcando Bossa'), o pai era homem de rádio também, ele já tinha tido um certo contato com mesa de som. 'Os planos de profundidade do som são infinitos, todo músico sabe que no estúdio a coisa se torna meio mágica, as possibilidades são infinitas em termos de rendimento. O trabalho de mixagem faz um disco novo. A mixagem é um trabalho de criação mesmo, e de polimento em relação à gravação bruta. Mas depende do exercício contínuo'. Exercício contínuo de técnica e da música interior, que põe 'uma pessoa só, ou várias pessoas numa só, em harmonia com o todo'.
O exercício de mixagem é um exercício interior, da mixagem das próprias vozes das pessoas, se juntam em várias músicas. Uma voz tipo barítono, a normal e aguda cantam superpostas em 'Arte e manha': o 'Bumbo do mundo', 'um desfile particular de escola de samba', dois acontecimentos musicais cruzam o espaço do som e se encontram no meio; a cada repetição Walter canta com uma entonação diferente as frases 'foi meu mestre quem te ensinou, foi teu mestre quem me ensinou', de 'Partir do alto/animal sentimental'; e as variações de 'Éter/na/mente' ficam em polifonia com pulsações silábicas, soando na cabeça. Só ouvindo.
Pergunto: Mas a violência das pessoas, Walter, da cidade, do mundo, diante de toda essa sutileza? e o festival Abertura, onde chegou a não poder cantar até o final? Como é que fica?
'Quando a gente se aproxima de um bebê, por exemplo, a gente precisa se anular, pra não passar pra ele uma barra muito forte, pra que ele não receba aquela carga. Na relação das pessoas, na relação com o público, isso também acontece. No Festival da Canção, com Cabeça ('que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir, irmão) eu soltei a coisa com uma violência paralisante. Era uma coisa de chicote. A minha participação seguinte foi me anular como a gente se anula perto de uma criança recém-nascida, e a violência foi maior. Pra mim foi uma experiência pra provar que essa não-violência é uma coisa fortíssima. Em Muito tudo, do Abertura, a preocupação minha é essa coisa do limite que há entre a respiração, o silêncio, o sussurro, e a partir da volização conseguir a ciranda, o fado, a ponta da língua'.
Você não acha que Caetano e Gil, ou Macalé, que são pessoas que tem um senso carnavalesco, podem lidar mais efetivamente com o público a seu favor, surpreendê-lo na hora, superá-lo, impor frente a um público adverso o seu próprio jogo?
'Sim, mas está ligado também ao fato do público já conhecer o que eles fazem. No meu caso, se eles estivessem relacionando o meu trabalho com as várias músicas que fiz, as mais expansivas, todo mundo pararia para saber porque estou cantando baixo, e ouvir. Acho que isso pode ser conseguido dentro dessa condição, a de impor, sendo conhecido, a elasticidade do trabalho'.
'A sustentação dessa coisa toda tem a ver com a esquiva. Quem não tem balangandã não vai ao Bonfim. Tem a ver com saber como se encostar no muro. Coisa de malandro. Arte e manha. Conseguir trânsito livre apesar do sinal fechado'.
E você acha que dá pra alcançar um maior número de pessoas, chegar com Revolver mais longe do que o seu primeiro disco, que teve uma venda quase inviável nas lojas?
'Sim, esse disco de agora chama as pessoas, está mais próximo, mais envolvente. A própria capa (um trabalho feito com Paula Tanaka) atrai mais, influi. Acho que ele pode ampliar as pessoas que escutam. Está um disco muito corporal, desde as cores, o som, e acho que nisso está a ligação dele com o rock. Aos poucos vão digerindo a minha música. E apesar da gravadora lançar por um problema de prestígio e não de vendas, pode acabar encontrando válvulas de escape, ele tem coisa pra tocar no rádio.
'Tem gente fazendo coisa bonita, mesmo sem ser conhecida. O importante é a certeza de estar transando numa faixa positiva dessa coisa não-resistente, pra que algo não te tire do ar. E fazer música para as crianças, que vão pegar tudo isso intuitivamente, sem precisar do exercício que a gente precisa'. "
O tempo: 'Uma faixa que deu trabalho na gravação foi Apesar de tudo é muito leve, que dura 5 segundos. É só esta frase (que faz parte de Muito tudo) cantada uma vez, a voz-sorriso, a respiração. No meio tem uma pequena inspiração, uma implosão. Eu fui na Praça de Sé assistir a implosão daquele prédio, o Mendes Caldeira. Na hora foi tão rápido que eu me lembrei dessa música. Ela podia ser a música-tema da implosão, aqueles cinco segundos (e não nove como disseram porque a queda mesmo foi mais rápida), a implosão, a força condensada, o apesar de tudo é muito leve...'
'Pra mim a música tem que ser polarizada para uma definição em termos de vida do que com a música em si. Um exercício de harmonia , de prazer, de passar um prazer para o outro, e manter o equilíbrio. Pingue-pongue. Se você sorrir para mim como o seu olho eu posso sorrir pra você com o meu olho. Eu me preocupo em usar o som como uma transação de cura, onde todos precisam ser curados'. ('Me lembro do Gil: 'quem tem cara/ tem cura' e do 'Toque frágil' do disco de Walter Franco: 'o sorriso/ do cachorro/tá/ no rabo', com o coro, as duas baterias, as vozes sorrindo, rindo à solta, tudo mixado e curado pela infância, pelo amor/humor).
Pergunto a Walter onde ele aprendeu a usar os recursos de estúdio, os canais, a mixagem, porque logo no primeiro disco ele já saiu dominando tudo isso. Ele diz que como trabalhou em rádio (em 67 tinha um programa na rádio Marconi chamado "Marcando Bossa'), o pai era homem de rádio também, ele já tinha tido um certo contato com mesa de som. 'Os planos de profundidade do som são infinitos, todo músico sabe que no estúdio a coisa se torna meio mágica, as possibilidades são infinitas em termos de rendimento. O trabalho de mixagem faz um disco novo. A mixagem é um trabalho de criação mesmo, e de polimento em relação à gravação bruta. Mas depende do exercício contínuo'. Exercício contínuo de técnica e da música interior, que põe 'uma pessoa só, ou várias pessoas numa só, em harmonia com o todo'.
O exercício de mixagem é um exercício interior, da mixagem das próprias vozes das pessoas, se juntam em várias músicas. Uma voz tipo barítono, a normal e aguda cantam superpostas em 'Arte e manha': o 'Bumbo do mundo', 'um desfile particular de escola de samba', dois acontecimentos musicais cruzam o espaço do som e se encontram no meio; a cada repetição Walter canta com uma entonação diferente as frases 'foi meu mestre quem te ensinou, foi teu mestre quem me ensinou', de 'Partir do alto/animal sentimental'; e as variações de 'Éter/na/mente' ficam em polifonia com pulsações silábicas, soando na cabeça. Só ouvindo.
Pergunto: Mas a violência das pessoas, Walter, da cidade, do mundo, diante de toda essa sutileza? e o festival Abertura, onde chegou a não poder cantar até o final? Como é que fica?
'Quando a gente se aproxima de um bebê, por exemplo, a gente precisa se anular, pra não passar pra ele uma barra muito forte, pra que ele não receba aquela carga. Na relação das pessoas, na relação com o público, isso também acontece. No Festival da Canção, com Cabeça ('que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir, irmão) eu soltei a coisa com uma violência paralisante. Era uma coisa de chicote. A minha participação seguinte foi me anular como a gente se anula perto de uma criança recém-nascida, e a violência foi maior. Pra mim foi uma experiência pra provar que essa não-violência é uma coisa fortíssima. Em Muito tudo, do Abertura, a preocupação minha é essa coisa do limite que há entre a respiração, o silêncio, o sussurro, e a partir da volização conseguir a ciranda, o fado, a ponta da língua'.
Você não acha que Caetano e Gil, ou Macalé, que são pessoas que tem um senso carnavalesco, podem lidar mais efetivamente com o público a seu favor, surpreendê-lo na hora, superá-lo, impor frente a um público adverso o seu próprio jogo?
'Sim, mas está ligado também ao fato do público já conhecer o que eles fazem. No meu caso, se eles estivessem relacionando o meu trabalho com as várias músicas que fiz, as mais expansivas, todo mundo pararia para saber porque estou cantando baixo, e ouvir. Acho que isso pode ser conseguido dentro dessa condição, a de impor, sendo conhecido, a elasticidade do trabalho'.
'A sustentação dessa coisa toda tem a ver com a esquiva. Quem não tem balangandã não vai ao Bonfim. Tem a ver com saber como se encostar no muro. Coisa de malandro. Arte e manha. Conseguir trânsito livre apesar do sinal fechado'.
E você acha que dá pra alcançar um maior número de pessoas, chegar com Revolver mais longe do que o seu primeiro disco, que teve uma venda quase inviável nas lojas?
'Sim, esse disco de agora chama as pessoas, está mais próximo, mais envolvente. A própria capa (um trabalho feito com Paula Tanaka) atrai mais, influi. Acho que ele pode ampliar as pessoas que escutam. Está um disco muito corporal, desde as cores, o som, e acho que nisso está a ligação dele com o rock. Aos poucos vão digerindo a minha música. E apesar da gravadora lançar por um problema de prestígio e não de vendas, pode acabar encontrando válvulas de escape, ele tem coisa pra tocar no rádio.
'Tem gente fazendo coisa bonita, mesmo sem ser conhecida. O importante é a certeza de estar transando numa faixa positiva dessa coisa não-resistente, pra que algo não te tire do ar. E fazer música para as crianças, que vão pegar tudo isso intuitivamente, sem precisar do exercício que a gente precisa'. "
Não conseguiu ser conhecido como Caetano e Gil.
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